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Episódio Um

Chiharu

 

Episódio Um

 

Eu estou sozinha. Num mundo escuro. Num mundo pequeno. De longe eu posso ouvir uma voz. Uma voz chamando desesperadamente o meu nome. Meus braços e pernas estão presos por correntes, e mesmo que eu olhe ao redor não posso ver ninguém. Apenas escuridão. Um floco de neve cai do alto deste lugar e se derrete na minha face. Eu já estive do lado de fora. Num mundo cheio de cores, onde eu era livre. Mas por causa de uma vontade que não posso controlar agora estou aqui. Sozinha.

Nesse mundo escuro. Nesse mundo pequeno.

Onde a primavera nunca chega.

 

. . .

               

" Ei, aquele ali é o garoto transferido, não é?"

" Sim. Ouvi dizer que ele foi muito mal em quase todas as provas que fez. "

" Claro, né? Ele vive cabulando todas as aulas! "

 

. . .

 

" Eu ouvi dizer que ele não tem nenhum amigo. "

" Eu hein, que cara esquisito! "

" Você devia ficar longe, ou vai acabar pegando a esquisitice dele! "

 

Eu posso ouvir, sabiam? De vários cantos da sala, várias


vezes por dia, vários dias na semana. Eu sempre consigo escutar quando sou assunto de conversas. Aquelas duas garotas falando sobre minhas notas, aquele trio de idiotas me chamando de esquisito. Vocês são o que, crianças? Que piada mais idiota! Estou com raiva. Do que eles sabem? Eles não sabem de nada... E mesmo assim, de alguma forma, isso está me incomodando... Droga...

Eu acordei do meu transe quando o sinal invadiu as salas e ecoou por toda a escola. O professor havia deixado algumas notas no quadro para que anotássemos e lia calmamente um livro enquanto esperava o fim da aula. Ele marcou a página em que havia parado de ler e se levantou para se despedir da turma.

" Por hoje é só. Certifiquem-se de ter anotado tudo e não se esqueçam de ler os capítulos do livro para a próxima aula. "

Eu me apressei para recolher as coisas e saí apressado da sala. Todos olharam pra mim, como sempre. Eu não me importei. Tinha coisas mais importantes pra fazer. Todos aqueles olhares me reprimindo. Mas ninguém entendia. Ninguém sabia.

Ninguém.

Eu atravessei os corredores e desci as escadas. Depois da próxima curva era apenas uma linha reta até a saída do prédio. Eu virei a esquina do corredor mas fui surpreendido por uma barreira que nunca estivera ali antes.

-- Ugh!!

Ai.

A força do choque me derrubou. Enquanto eu tentava recobrar os sentidos, acabei notando que a barreira na qual eu tinha me chocado era na verdade uma pessoa. Um garoto da minha idade, de cabelos brancos. Ele era maior e mais forte, mas de alguma forma tinha um rosto amigável. Eu comecei a me levantar. Acho que vou tentar me desculpar e...

" Olha por onde anda! "

Ou não. O rosto amigável tomou uma expressão de raiva e frustração. Parando pra pensar, acho que parecia mais de uma vergonha mal contida por ter caído. Um outro garoto de cabelos vermelhos apareceu rindo com um sorriso caloroso.

" Vamos, Kai, não seja tão briguento. Ei, você, você está bem? "

-- Ah, bom...

Nenhum osso quebrado e minha cabeça parece estar no lugar. É, acho que sim.


-- Estou.

Eu me levantei um segundo depois do garoto que tinha esbarrado em mim. Ele ainda parecia frustrado com a situação, então eu resolvi continuar com meu pedido de desculpas.

-- Desculpe, eu vou ter mais cuidado da próxima vez.

Ele pareceu querer abrir a boca pra falar algo, mas se acalmou e olhou para o lado para desviar do meu olhar.

" Tudo bem, contanto que não aconteça de novo. "

Pronto. Situação resolvida. Agora podia continuar meu rumo. Continuei andando pelo corredor mas a voz do de cabelo vermelho me chamou novamente.

" Ei, você é aquele estudante transferido, não é? "

Droga. Ele me reconheceu. Agora tinha certeza que falaria algo para zombar comigo por causa... Bom, haviam uma série de motivos.

" Parece que não fomos muito bem nos testes, não é? É mais difícil do que parece, não sei como os outros conseguem. "

Isso me surpreendeu. A escola era bem conhecida por manter seus alunos num nível um tanto quanto acima da média. Além disso era bem difícil entrar na escola, era necessário ter um desempenho diferenciado ou um alguém que te indicasse, geralmente pais influentes ou algo assim. A maioria dos estudantes tiravam boas notas, por isso sempre teriam como se vangloriar com os piores da escola. Não que eu seja burro ou algo do tipo... Pelo menos eu não acho que seja, mas eu não tenho muito... Tempo. De qualquer forma, minha linha de pensamento acabou não me deixando pensar numa resposta adequada para a situação e o garoto foi quem continuou a conversa.

" Seu nome é... Al... Al... "

-- Alkaev Makoto¹.

É um nome complicado. Alkaev é um nome russo que significa "Desejo". É difícil para a maioria dos Japoneses pronunciar perfeitamente a palavra. Eu sorri. Era um nome um tanto quanto constrangedor, mas me orgulhava dele. Eu decidi tornar a vida do garoto mais fácil.

-- Pode me chamar de Makoto.

O garoto sorriu. Parecia ser uma pessoa amigável. Um cordeiro no meio de lobos. Ele se apresentou em seguida.


" Meu nome é Nekogami Akakyo. E o esquentadinho do meu lado é Osakura. Osakura Kaioshi. Prazer. "

 

Eu sorri.

 

-- Prazer.

 

Nekogami. Osakura. Certamente lembrarei.

 

-- Desculpem, mas... Eu estou com um pouco de pressa, então... Nos falamos depois.

 

" Ah, entendi. "

 

Ele fez uma cara de desapontamento, mas logo em seguida aceitou a ideia. Talvez ele perguntasse qual era o motivo da minha pressa, mas antes que ele pudesse fazer isso eu já estava me virando e me despedindo

 

-- Até mais!

 

Eu corri apressado para recuperar os segundos perdidos. Eu ainda pude ouvir os dois conversando enquanto viravam a esquina do corredor.

 

" Então, a próxima aula é de que? "

 

" Bom, acho que é de... "

 

 

 

. . .

 

 

 

O dia estava ensolarado. Isso fez com que eu suasse e me cansasse mais do que o esperado. Eu parei pra dar duas boas e longas respiradas antes de entrar pela porta. Girei a chave e então estava dentro da casa. Minha casa é de um interior que segue alguns padrões típicos japoneses. Depois da porta moderna, haviam portas de deslizar. Descalcei os sapatos e fui direto pro quarto da minha irmã. Sim, eu tenho uma irmã. O nome dela é Shizuka. Ela tem belos cabelos brancos, olhos azuis, e uma pele tão clara que parece que é feita de neve.

Eu abri a porta do quarto e lá estava ela, exatamente onde havia ficado quando eu saí. Ela estava deitada na cama, coberta por um fino lençol. Eu a descobri e passei a mão pelo seu rosto para acorda-la. Sua pele parecia tanto com neve que parecia que ia desmanchar só de toca-la. Ela abriu os olhos e me olhou. Aquele olhar cortou meu coração. Sempre cortava. Shizuka. Shizuka significa "Quietude". Um nome cruel, uma maldição desde o nascimento. Minha irmã sofre de uma doença desconhecida. Ela não tem movimento da maior parte do corpo.  Ela consegue mover o suficiente para suas necessidades básicas. Ela também consegue mover seus olhos e seus lábios. No início eu conseguia ler seus lábios para saber o que ela dizia, mas com o tempo ela acabou se esquecendo como se diziam as palavras, ou simplesmente perdeu o domínio que tinha de sua boca. Era cruel. Às vezes eu sentia como se ela quisesse desesperadamente dizer algo mas não conseguisse.

 

-- Onee-chan¹, desculpe por te acordar.

Ela sorriu como se não se importasse.

-- Certo...

Eu a carreguei nos braços e a levei até o banheiro. Lá, molhei um pouco as mãos e passei na beirada de seus olhos para tirar as remelas. Além disso, ajudei ela a urinar. Talvez achassem inapropriado que o irmão acabasse ajudando a irmã com esse tipo de coisa, mas era algo tão rotineiro que eu já não me importava. Eu a levei de volta para a cama, fiz uma pilha de travesseiros e deixei ela encostada ali, sentada. Fui até a cozinha e trouxe um copo d'água, que despejei com cuidados sobre seus lábios para que bebesse. Coloquei o copo quase vazio sobre a bancada e ela sorriu agradecida.

-- Eu vou preparar o almoço. Já volto.

Eu liguei a pequena TV que ficava de frente para a cama. Estava passando o programa preferido de Shizuka: Um anime chamado Musical Peach. Era um anime onde garotas ganhavam poderes especiais dependendo da música que estavam escutando. O traço era um tanto infantil ( assim como a estória ), mas ela sempre parecia feliz quando assistia. Eu sorri enquanto deixava a porta entreaberta.

Fui até a cozinha e comecei a preparar o almoço. Fiz ovos mexidos, arroz, e tive o maior cuidado em checar 3 vezes por espinhas no peixe desfiado. Já haviam acontecidos acidentes algumas vezes com isso e eu nunca parei de me sentir culpado. Adicionei um pouco de salada picada com tomates, cenouras e batatas e despejei um pouco de suco de laranja num copo. Fui até o quarto dela e como sempre ela estava no mesmo lugar que eu a deixei. Ela sorriu quando me viu entrar. Ver Shizuka sempre melhorava o meu humor. Eu sorri e arrisquei um pouco de inglês para melhorar o humor.

-- Today the menu is rice, fish, eggs and salad.

Minha pronúncia com certeza foi atropelada e totalmente equivocada, embora eu não saiba dizer exatamente aonde. Minha frase foi seguida de um gesto refinado e uma reverência, e eu pude ver os dentes de Shizuka aparecendo quando levantei a cabeça. Eu me sentei ao seu lado na cama e comecei a dar garfadas da comida para ela. Ela comia devagar. Eu chequei mais duas vezes por espinhos no peixe, mas não havia nenhum.

Ainda bem.

Quando eu terminei, dei o suco pra ela devagar. Ela bebeu, satisfeita.

-- Você precisa de mais alguma coisa?

Eu sabia que ela não poderia mover sua cabeça pra dizer sim ou não, mas bastava olhar em seus olhos pra saber a resposta. Era um não.

-- Ok, certo então!

Agora faltava pouco. Eu havia perdido o último período todo, mas se corresse chegaria a tempo pro almoço e poderia acalmar minha barriga que estava protestando violentamente. Eu fui até o banheiro e passei pasta na escova de Shizuka, escovando seus dentes com cuidado. Depois fiz com que ela cuspisse no copo vazio de suco e usei o resto do copo d'água para que ela enxaguasse a boca. Levei tudo para a cozinha, onde coloquei sobre a pia, que já acumulava uma pilha de louça suja. Eu suspirei.

Isso vai dar um trabalhão...

Eu peguei o que precisava depressa e saí de casa. Me surpreendi no meio do caminho com a chuva que caia.

Droga, droga, droga, droga!

Eu comecei a correr, tentando proteger a cabeça inutilmente com um pedaço de papelão que encontrei no meio da rua.

Quando cheguei na escola, estava ensopado. Eu tirei os sapatos e troquei as meias, mudando pros sapatos de interior. Eu esperei um pouco antes de caminhar pelos corredores, para que a água pudesse escorrer. O período de almoço estava quase acabando. Considerando o quão cheio sempre fica o refeitório eu não vou conseguir comer algo a tempo do próximo período...

Eu fui até o vestiário para terminar de me secar. Abri meu armário na esperança de ter guardado alguma roupa para trocar mas não havia nada lá. Eu suspirei. Talvez eu devesse ser mais precavido.

" Haha, parece que alguém tomou um banho. "

Eu ouvi uma voz familiar. De onde era mesmo? Eu me virei e então ficou claro.


Eram os dois garotos que eu tinha visto mais cedo. Eles estavam vestindo suas roupas de ginástica. Só posso concluir que ginástica era o próximo período deles. Quem havia falado era o garoto briguento de cabelos brancos. Osakura Kaioshi. Nekogami, o de cabelos vermelhos continuou.

" Não fique zoando ele, Kai. Não se esqueça que temos corrida agora. Considerando a personalidade do Tachibana-sensei¹ eu duvido que ele vá nos liberar por causa de uma chuvinha."

" Eu sei! Eu sei muito bem... Droga... "

Ele coçou a cabeça, irritado. Então, como se um estalo mental o tivesse atingido, ele levantou o semblante com uma ideia.

" Ei, Akakyo, vamos matar aula. "

" Ehh? Mas já estamos até trocados! "

" Eu sei, mas você realmente quer ir lá fora com essa chuva? "

" Você já está com má fama com o conselho estudantil, quer realmente começar a matar aula agora? "

" Ah, vamos! Não temos nenhum problema com ginástica, não acho que uma única falta vá fazer  tanta diferença... "

De alguma forma, acho que acabei sendo esquecido na conversa. Eu fechei discretamente o armário e me preparei para sair dali, mas fui chamado pela voz de Akakyo.

" Ah, Makoto-kun². Eu queria te perguntar. Você foi embora no último período não foi? "

-- Hum? Eu? Ah, bom...

As palavras se atropelaram e eu não consegui bolar uma resposta decente. Osakura foi o próximo a falar.

" Ah, é, Makoto! Você matou aula no último período e também experimentou essa chuva, convença ele que não precisamos ir lá fora! "

Eu ponderei um pouco. Realmente o tempo não estava em boas condições e eu mesmo não sei se iria à aula se forçado sob essas condições... Mas como eu já estava à meio caminho da escola não tive muita escolha. Enquanto eu pensava, Nekogami, que parecia estar fazendo o mesmo pareceu aceitar à ideia.

" Droga, tudo bem, tudo bem. No entanto o Makoto-kun terá que vir com a gente? "

-- O que, eu?


Eu não estou em condições de ficar faltando aulas dessa forma. Minhas notas não param de cair e eu temo pelo meu futuro se as coisas continuarem assim...  No entanto antes que eu pudesse recusar a proposta, meu estômago, que pareceu achar o momento muito oportuno roncou ferozmente, fazendo com que meu rosto corasse em resposta. Que embaraçoso...

" Haha! Pelo visto você não almoçou também! "

Nekogami deixou escapar um riso e sorriu em seguida.

" Vamos, vamos, o Kai vai te pagar algo pra comer. "

Sua velocidade de se trocar me surpreendeu e ele já estava com o uniforme normal da escola antes que eu pudesse perceber o que havia acontecido. Osakura se dobrou para frente em protesto, mas Nekogami já estava caminhando em direção a porta. "

" Hã, eu que vou pagar!? Ei, Akakyo, volte aqui!! Eu ainda estou com meu uniforme de ginástica!"

Eu pensei novamente em aguentar a fome e recusar a proposta, mas meu estômago percebeu meu pensamento e me impeliu com um outro ronco furioso.

É...

Acho que no fim das contas, o presente é mais importante que o futuro.

 

. . .

 

Eu e Akakyo chegamos primeiro à máquina de vendas que ficava no exterior da escola. Felizmente, ela ficava numa área coberta então o máximo que nos molhamos foi com os pingos trazidos pelo vento. Kaioshi chegou alguns minutos depois. No fim eu acabei comprando meu próprio macarrão instantâneo da máquina. Eu abri e assoprei para dissipar o calor. Em seguida peguei os palitos que acompanhavam e pronunciei uma palavra de agradecimento.

-- Itadakimasu¹...

Eu comecei a comer. O calor do macarrão serviu para aquecer meu corpo resfriado. Era uma sensação boa. Eu abri a boca e um vapor saiu dela, se dissipando no ambiente. Osakura havia se sentado ao lado da máquina, enquanto Nekogami estava apoiado na parede, com o joelho esquerdo dobrado. Por minha vez, eu estava comendo em pé, enquanto olhava a chuva. Os dois haviam iniciado todas as conversas até agora, então eu achei que era minha obrigação fazer isso em seguida. Eu terminei de engolir a porção de macarrão que estava na boca e me virei para os


dois.

Nada. Não consegui pensar em nada para dizer. Aqueles dois poderiam ser meus primeiros ( e talvez os únicos ) amigos naquela escola, e eu tenho que admitir que estava um pouco nervoso. Os dois olharam pra mim e Nekogami perguntou.

" O que foi? "

-- Então... Vocês são amigos há muito tempo?

Que pergunta mais... Não consigo encontrar um adjetivo para demonstrar minha decepção.

" Quem disse que somos amigos? Ele é meu escravo. "

Osakura falou, convencido, e Nekogami apenas sorriu.

" Essa doeu. "

Parece que minha pergunta ficou sem resposta definitiva, mas o jeito que eles lidaram com isso serviu para me deixar mais descontraído.

" Você é estrangeiro de algum lugar? "

A pergunta veio do rapaz de cabelos brancos.

" Alkaev. Isso é o que, italiano? "

-- Ah, bom... Eu nasci no Japão, mas meu pai é russo... Por isso é um pouco complicado dizer o que eu sou. Mas de alguma forma meu pai acabou deixando nos registros que ele era japonês, por isso acho que posso considerar que sou japonês.

A resposta longa pareceu não importar muito para Osakura, que simplesmente se satisfez com as palavras "russo" e "japonês".

" O que seu sobrenome quer dizer? "

Agora foi a vez do garoto de cabelos vermelhos de se dirigir à mim.

-- Ah, bom... Alkaev quer dizer desejo em russo.

Ele pareceu compreender.

" Entendi. Alkaev Makoto. É um bom nome. "

Ele disse isso por que Makoto quer dizer sinceridade. Em outras palavras, meu nome significa "desejo por sinceridade". Eu não consegui deixar de pensar no nome de Shizuka, que significa "desejo por quietude. " Meu olhar desceu em direção ao chão enquanto eu concordava.

-- É... É um bom nome.

Eles pareceram notar minha mudança de humor. Eu não poderia ficar com o humor pra baixo perto deles, portanto eu forcei um sorriso torto e tratei de me animar.

Nós continuamos conversando pelo resto do período. A chuva parou e agora apenas algumas gotas escorriam e pingavam. Nos despedimos e fomos para nossas respectivas salas.

Aqueles dois eram incrivelmente amigáveis. Agora a escola já não parecia mais um ambiente hostil, embora minha sala de aula ainda fosse indiscutivelmente desconfortável. Apesar disso, eu me esforcei para continuar prestando atenção nas aulas pelo resto do dia.

 

. . .

 

Eu tentei encontrar aqueles dois quando as aulas acabaram, mas acabei não conseguindo.

Acho que não tenho escolha senão desistir e ir pra casa sem me despedir.

Eu cruzei o portão da escola e caminhei até em casa. O sol estava começando a se por, e isso causava um efeito bonito nas ruas da cidade. Eu continuei caminhando. Lá está. A última esquina na qual eu tenho que dobrar. Eu suspirei aliviado que o trajeto cansativo estava quase acabando, mas fui pego de surpresa pela visão que apareceu na minha frente.

Ao passo que o sol se punha, em frente à porta da minha casa estava uma garota de cabelos loiros, trajando um uniforme escolar diferente do meu. Na minha escola as garotas usavam um casaco preto e saia vermelha, acompanhado de uma gravata também avermelhada. No entanto o uniforme daquela garota consistia de um suéter acinzentado sobre uma camisa branca, uma saia azul e sem gravata. Como se orquestrado, um raio de sol iluminou o rosto dela levemente por alguns segundos, e em seguida ofuscou minha visão. Quando eu abri os olhos, nossos olhares se cruzaram. Agora que eu podia ver o rosto dela um pouco melhor, ela parecia incrivelmente familiar.

Aquela garota...

Ah, agora eu lembro!

-- Nanami?


Ela abriu um largo sorriso, como se esperasse que eu a reconhecesse, ou como se estivesse esperando uma confirmação de que aquele era realmente eu. Ela caminhou depressa na minha direção, e eu acabei caminhando na direção dela também. Nós nos abraçamos e eu não pude evitar sorrir também.

Suzuyama Nanami.  Quando éramos menores, costumávamos brincar sempre.

Eu, ela e Shizuka.

A verdade é que não nos vemos há muito tempo. Eu me mudei pra casa dos meus tios quando tinha 10 anos. Quando Shizuka começou a adoecer, nossa cidade ainda não era muito grande... Estávamos com falta de médicos e meus pais iam até a cidade mais próxima para trazer um médico para vê-la.

No entanto...

Uma tempestade acabou caindo no meio do caminho. Eu não sei bem como aconteceu, mas provavelmente a chuva e a pressa fez com que meu pai perdesse o controle do carro. Meu pai e minha mãe acabaram morrendo no acidente. Como eu era muito pequeno para viver sozinho, acabei me mudando. Foi duro... Na mesma época perder meus pais, minha melhor amiga e ter que ver Shizuka ficar pior e pior a cada dia.

Não que Shibuya¹ fosse um lugar ruim, mas eu estava com um estado emocional abalado demais para gostar de lá. Eu odiava aquele lugar com todas as minhas forças. Shizuka ficava cada vez mais debilitada e depois de alguns meses eu ouvia brigas constantes de meus tios. Minha tia, que não tinha nenhum parentesco de sangue com minha mãe, não queria ter que ter que assumir a responsabilidade de cuidar da gente. Meu tio, no entanto, insistia para que eles ficassem conosco. Depois de um tempo eles queriam deixar Shizuka num hospital, onde poderiam cuidar melhor dela. Mas eu nunca concordei com isso. Eu nunca confiaria que pessoas estranhas pudessem cuidar melhor da minha irmã do que eu. Desde cedo eu ajudava ela com tudo que podia. Por fim, quando minha tia engravidou, meu tio se viu num beco sem saída, em questões de responsabilidade e dinheiro. Acabamos indo morar com meus avós.

Meus avós eram pessoas muito gentis e atenciosas. Eles nos ajudaram muito e foram bem compreensivos. Eu já estava mais maduro e menos rebelde. De certa forma, eu começava a compreender a situação de meus tios depois que algum tempo passou. A cidade em que ficamos era menor que Shibuya, mas ainda assim maior que nossa cidade natal. Todo esse tempo eu passei tão focado em cuidar de Shizuka que quase não fiz nenhuma amizade. E mesmo assim, quando meus avós morreram e eu voltei pra cá, nenhuma foi tão forte a ponto de se manter viva.

Minhas responsabilidades aumentaram muito. Tanto que eu não consegui acompanhar o passo. Os pratos vivem sujos e a maior parte da casa (leia-se tudo que não for o quarto de Shizuka e a


sala) está um caos. Além disso, minhas notas na escola não param de cair e não consegui fazer nenhum amigo. Bom, até pouco tempo, quando aqueles dois falaram comigo, embora eu não sei se posso chamá-los de "amigos" ainda.

Ah, eu viajei um pouco no passado agora. De qualquer forma, o abraço foi longo o suficiente para que eu pudesse voltar à realidade à tempo. Quando terminamos, um olhou pra cara do outro sem saber muito bem o que dizer. Quando notamos nossas expressões pensativas, ela riu e colocou a mão na frente da boca, enquanto eu fiz o mesmo enquanto coçava a cabeça.

-- Quanto tempo, né...

" É... "

Ela olhou pra minha casa como se lembrasse de algumas coisas, então olhou pra mim emburrada.

" Que história é essa de Nanami? "

-- Ah, desculpe, Nana.

Eu sorri ao me lembrar do apelido de infância dela. Ela fez o mesmo, acompanhado de um "Hihi".

" Como está a Shizu-Chan? "

Eu olhei para a casa também. Como eu vou dizer isso pra ela? Eu olhei de volta pra seu rosto e seus olhos verdes estavam me fitando. Eu não consegui dizer enquanto olhava diretamente para eles.

-- A condição dela piorou...

" Essa não... "

Ela olhou pra porta com os olhos começando a encharcar. Eu não quero ver um rosto que estava feliz agora a pouco triste daquele jeito.

-- Mas ela está bem!

Que controverso...

-- Quero dizer... Vai ficar tudo bem. Ela está estável faz um ano. Além disso, eu estou cuidando dela, então vai dar tudo certo!

Eu apontei meu polegar pra mim mesmo e sorri com uma cara convencida. Ela sorriu, mas visivelmente continuou insegura. A verdade é que eu também estou inseguro. Eu nunca sei se ela vai piorar ou não. Se ela piorar a ponto de não conseguir nem suprir suas necessidades básicas sem ajuda de máquinas eu não vou poder mais ficar com ela...

Eu não quero isso.

Eu olhei para Nana, dessa vez prestando melhor a atenção nela. Ela cresceu bastante, mas ainda assim é menor do que eu. Eu me lembro que ela se vangloriava de ser maior que eu quando éramos pequenos, mas agora eu tinha passado dela. Ela também ficou muito bonita. Suas curvas ficaram bem desenhadas e seus seios...

Aah!

Vai ser um problema se ela me pegar olhando pra aí, então eu desviei o olhar. Mas, mesmo. Ela se tornou uma garota muito bonita. Shizuka também. Mesmo sendo magra e tendo pernas e braços finos, seu rosto deve estar entre os mais bonitos que já vi. Ela se parece muito com nossa mãe, embora nossa mãe tivesse cabelos castanhos, da cor dos meus.

Meus olhos são do meu pai. Ele tinha olhos cor de mel, bem claros, quase amarelos, e eu herdei isso. Em contrapartida, os cabelos brancos de Shizuka vieram de meu pai. É uma mutação bastante rara, mas há mais chances de ocorrer de pai pra filho.

Novamente eu tinha viajado, Nanami estava olhando para mim. Já tínhamos ficado em silêncio por alguns segundos. Eu resolvi quebrar o silêncio com uma oferta.

-- Você quer vê-la?

Os olhos dela se iluminaram com minhas palavras.

" O quê? Posso mesmo? "

-- Claro!

. . .

 

Eu esqueci desse detalhe...

Estamos dentro de casa. Eu fiquei totalmente sem graça com a bagunça e a sujeira que estavam os cômodos. Nana fez uma reação exagerada enquanto passava o dedo num móvel.

" Uaaah! Incrível, Makoto, você deve ter quebrado algum tipo de recorde! A quanto  tempo você não limpa isso? "

-- Cale a boca.

Eu olhei pro lado. Não queria ter que levar broncas dela como quando eu era pequeno. Eu cruzei a distância do corredor até o quarto de Shizuka e abri a porta devagar.

Como sempre, ela estava exatamente onde eu a deixei. Ela estava na cama, coberta por seu lençol azul. Eu toquei sua bochecha com o indicador para chamar sua atenção. Suas pálpebras tremeram e seus olhos azuis se abriram e se viraram na minha direção.

-- Onee-Chan, você tem visita.

Sua boca se abriu um pouco e suas sobrancelhas fracamente se ergueram, num gesto de indagação. " Quem poderia ser? " Era o que provavelmente ela pensou. Eu fiz sinal para Nana, que vacilantemente foi caminhando até se apoiar na parede da porta do quarto. O sorriso de Shizuka se abriu instantaneamente. Eu pude ver lágrimas se formando nos olhos dela. Aconteceu o mesmo com os olhos de Nana, que da porta correu para a cama, se debruçando num abraço desajeitado sobre minha irmã.

" Shizu-Chan! "

Eu podia ver o quanto Nana queria chorar como um bebê. No entanto ela se conteve e se afastou para olhar nos olhos de Shizuka.

" Eu senti sua falta, Shizu-Chan! "

Eu fechei os olhos enquanto sorria e fui fechando a porta do quarto devagar à medida que saía.

Aquela era uma cena que eu nunca ia esquecer.

 

. . .

 

Incrível... Nanami está conversando até agora com Shizuka... Eu entendo que elas não se falam à muito tempo, mas uma conversa unilateral devia ter acabado à muito tempo. Realmente incrível.

Eu carreguei a bacia com água morna e um pano até o quarto. Passei pela porta com dificuldade. Nana não parou de falar até notar que eu carregava a bacia, e olhou pra mim se perguntando para que era.

-- Ah, eu vou dar banho na Shizuka agora.

" Ei... "

Ela, que estava de joelhos, se levantou com uma mão sobre o peito e olhou nos meus olhos.

" Eu posso ajudar? "

-- Huh?

Isso foi inesperado. Eu olhei pra Shizuka como se esperasse uma confirmação. Sua expressão continuou calma e serena. Era como se ela me dissesse: " Se for a Nana tudo bem. "

-- Sim, claro. Eu vou buscar outro pano.

 

. . .

 

Quando eu voltei nós tiramos a roupa de Shizuka e passamos o pano molhado sobre seu corpo. Eu não podia leva-la para o chuveiro por vários motivos. Primeiro por que seria muito trabalhoso dar banho nela enquanto a carregava, segundo por que ela poderia acabar se afogando. Melhor não arriscar.

 O procedimento de banhar alguém assim é demorado e cansativo, mas com duas pessoas acabou ficando mais rápido. Eu aproveitei para massagear os músculos dela. A massagem é importante para os músculos se manterem saudáveis. Nanami me pediu para que eu a ensinasse. Ela pega o jeito rápido.

Por fim, aproveitando a ajuda extra, nós enchemos um balde mais fundo com água e lavamos o cabelo dela. Eles são bem longos , por isso levou um tempo. Vestimos ela com um vestido azul claro de seda. Nana fez algumas tranças no seu cabelo e as amarrou com um laço. Shizuka ficou tão linda que mal podia acreditar que eu era parente dela.

Eu me estiquei depois de todo o trabalho, para diminuir a dor dos músculos enrijecidos. Eu convidei Nanami para jantar. Ela aceitou, mas insistiu em ajudar a preparar a comida. Achamos alguns aventais velhos e colocamos para cozinhar. Estávamos fatiando alguns legumes na cozinha quando eu imaginei que deveria puxar algum assunto.

-- Hum... Seu uniforme.

" Huh? O que tem ele? "

-- É bonito. Quero dizer, você fica bem nele.

" Aah... Obrigada. "

Acho que, se é que ela ficou vermelha, eu acabei ficando mais.

Droga, pense em algo pra falar, homem!

" Como está sua escola? "

Ai!

Eu coloquei o dedo sangrando na boca. Ela parou de cortar e percebeu que tinha algo errado. Droga, como ela chegou nesse assunto? Cabeça dura! Eu tinha que vir com a história do uniforme...

Eu desviei o olhar e respondi.

-- Nada demais...

" A verdade. "

Ela tinha que ser tão astuta...

-- Não muito bem... Um desastre, na verdade.

" Eu sabia. "

Eu me ofendi um pouco. Não é como se eu tenha cara de retardado ou algo do tipo...

" Você tem que cuidar da Shizuka e tudo o mais, é de se esperar que esteja indo mal na escola. "

Eu concordei em silêncio.

" Você fez amigos? "

-- Aah! Bom...

Houve uma pequena pausa.

-- Acho que... Sim...

Ela sorriu.

" Entendi. Isso é bom. "

Nós juntamos todos os legumes e as verduras num prato. Eu geralmente sou organizado quando preparo a comida pra Shizuka, mas a decoração de Nanami era muito melhor. Eu deixei que ela cuidasse do prato e fui cuidar do arroz.

" Acho que não vai fazer mal se eu vier aqui de vez em quando. "

-- Huh?

Eu olhei pra ela. Não quero trazer problemas desnecessários pra ninguém... Acho que é uma das razões de eu ter feito tudo sozinho até agora.

-- Não, você não precisa...

" Mas eu quero! Sabe... Eu sempre me senti culpada por não ter feito nada naquela época... De verdade, eu quero ajudar. "

Eu olhei pro arroz para evitar dar uma resposta.

" Por favor. "

Eu olhei pra ela. Que erro. Seus olhos estavam brilhando intensamente, mergulhados numa feição de imploração, tanto que me assustou. Era como tentar negar carinho à um filhote.

-- Tudo bem, se for só de vez em quando. Duas vezes por semana, no máximo.

" Sim, tudo bem! "

Ela se voltou animada para o que estava fazendo. A verdade é que eu me senti aliviado. Um pouco de ajuda de vez em quando não ia fazer mal. Eu ia ter um pouco mais de tempo pra estudar, quem sabe até sair, as vezes. Embora eu não estivesse totalmente certo em deixar Shizuka com outra pessoa, ainda que fosse Nanami, era algo que eu tinha que estar disposto à dar uma chance. Até mesmo pelo nosso futuro.

 

. . .

 

Nós levamos o jantar já pronto até a cama de Shizuka. Nanami pediu para cuidar de dar a comida à Shizuka. Eu não tive objeções. Eu experimentei uma garfada da carne e...

Incrível!

Minhas bochechas coraram de prazer no mesmo momento. Faz tempo que eu não como algo tão gostoso!

Eu sempre cuido de dar uma alimentação saudável à Shizuka, mas não tenho muito tempo pra cuidar da minha. Estou sempre comendo comidas instantâneas, e raramente como algo preparado, ainda mais com o cuidado que foi hoje. Demoramos cerca de 40 minutos comendo e conversando. Estávamos lavando os pratos quando eu me dei conta do horário.

-- Nana, não está tarde pra você ir pra casa?

" Uaah! É verdade! Eu tenho que ir correndo! "

Ela tirou o avental e deixou de lado o prato que estava lavando.

" Minha mãe vai me matar! "

Ela fez uma cara chorosa.

-- Eu vou com você!

Eu corri até o quarto de Shizuka e apareci apenas com a parte superior do corpo pela fresta da porta.

-- Onee-Chan, eu vou levar a Nana em casa e volto correndo!

Ela apareceu atrás de mim logo em seguida.

" Sim! Bye-bye, Shizu-Chan! "

 

. . .

 

Fomos correndo até a estação mais próxima, onde pegamos um trem para a zona norte da cidade. Nana falou o tempo todo dos tipos de punição que sofreria ao chegar em casa. Eu não lembrava que a mãe dela era tão assustadora assim. Que medo.

Depois de algumas dezenas de minutos finalmente chegamos. Eu ainda caminhei com ela até a porta de sua casa, embora ela insistisse para eu não vir.

" Você não precisa vir. Você tem que voltar logo pra casa por causa da Shizu-Chan. "

-- Tudo bem, não vai demorar muito.

No fim das contas, depois de tudo que ela fez, era o mínimo que eu podia fazer.

Finalmente chegamos na casa dela. Ela havia se mudado de onde ela morava antigamente, a casa era maior e mais bonita. O jardim era impecável. Eu lembro que era assim na antiga casa dela, e que quando brincávamos no jardim a mãe dela sempre brigava com a gente.

Ela se virou após subir alguns degraus e acenou pra mim.

" Até mais, Makoto.


-- Sim, até mais, Nana.

Ela entrou e fechou a porta depressa. Eu ainda fiquei olhando alguns segundos para a porta lembrando dos momentos que passamos quando éramos crianças. Eu lembro que sempre brincávamos de casinha.

Eu comecei a caminhar na direção da estação.

Shizuka e Nanami sempre brigavam pra saber quem seria o pai. Eu sempre acabava sendo o filho mas bem de vez em quando eu era a esposa. Droga, como eu queria ser o pai...

Eu lembro que em certa ocasião combinamos algo...

Cada um tinha que prometer alguma coisa e cumprir pelo resto da vida.

Eu lembro fui o primeiro e logo no início falei algo idiota.

-- Eu vou salvar o mundo!

Uma vez quando a Onee-Chan ralou a perna, Nanami fez a promessa dela.

" Eu vou sempre cuidar de vocês! "

E quando íamos nos mudar para a casa de nosso tios...

" Vamos estar sempre juntos... "

...

Trilhos.

Eu estava bem perto da estação. Foi um dia cheio.

-- Ah, cara, eu tô exausto...

Eu suspirei. Nesse momento, uma melodia adentrou meus ouvidos. De onde está vindo isso? Eu olhei na direção do som e vi a silhueta de uma garota em cima de um muro alto de uma casa japonesa tradicional bem antiga. Ela segurava um violão e dedilhava uma bela melodia.

Surechigai wa kekkyoku unmei de  subete wa sujigaki toori datte~

Kanashimi o magirawaseru hodo  boku wa tsuyokunai kara...

Hajikidashita kotae no subete ga  hitotsu futatsu gisei o tomonatte~

Mata ippo fumidasu yuuki o ubaitotte yuku...¹


Eu simplesmente fiquei paralisado com a beleza da voz da garota... Não, de toda a cena. A luz da lua cheia refletia claramente em seus olhos vermelhos e o vento batia levemente em seus cabelos. Era parou de tocar e cantar quando ia entrar no refrão, no mesmo momento em que me notou.

Nós nos olhamos nos olhos. Minha boca se abriu involuntariamente.

Estou sem palavras.

. . .

 

 

Chiharu - 01

Palavras.

 

 

 

Chiharu

 

Episódio Um

 

Eu estou sozinha. Num mundo escuro. Num mundo pequeno. De longe eu posso ouvir uma voz. Uma voz chamando desesperadamente o meu nome. Meus braços e pernas estão presos por correntes, e mesmo que eu olhe ao redor não posso ver ninguém. Apenas escuridão. Um floco de neve cai do alto deste lugar e se derrete na minha face. Eu já estive do lado de fora. Num mundo cheio de cores, onde eu era livre. Mas por causa de uma vontade que não posso controlar agora estou aqui. Sozinha.

Nesse mundo escuro. Nesse mundo pequeno.

Onde a primavera nunca chega.

 

. . .

               

" Ei, aquele ali é o garoto transferido, não é?"

" Sim. Ouvi dizer que ele foi muito mal em quase todas as provas que fez. "

" Claro, né? Ele vive cabulando todas as aulas! "

 

. . .

 

" Eu ouvi dizer que ele não tem nenhum amigo. "

" Eu hein, que cara esquisito! "

" Você devia ficar longe, ou vai acabar pegando a esquisitice dele! "

 

Eu posso ouvir, sabiam? De vários cantos da sala, várias


vezes por dia, vários dias na semana. Eu sempre consigo escutar quando sou assunto de conversas. Aquelas duas garotas falando sobre minhas notas, aquele trio de idiotas me chamando de esquisito. Vocês são o que, crianças? Que piada mais idiota! Estou com raiva. Do que eles sabem? Eles não sabem de nada... E mesmo assim, de alguma forma, isso está me incomodando... Droga...

Eu acordei do meu transe quando o sinal invadiu as salas e ecoou por toda a escola. O professor havia deixado algumas notas no quadro para que anotássemos e lia calmamente um livro enquanto esperava o fim da aula. Ele marcou a página em que havia parado de ler e se levantou para se despedir da turma.

" Por hoje é só. Certifiquem-se de ter anotado tudo e não se esqueçam de ler os capítulos do livro para a próxima aula. "

Eu me apressei para recolher as coisas e saí apressado da sala. Todos olharam pra mim, como sempre. Eu não me importei. Tinha coisas mais importantes pra fazer. Todos aqueles olhares me reprimindo. Mas ninguém entendia. Ninguém sabia.

Ninguém.

Eu atravessei os corredores e desci as escadas. Depois da próxima curva era apenas uma linha reta até a saída do prédio. Eu virei a esquina do corredor mas fui surpreendido por uma barreira que nunca estivera ali antes.

-- Ugh!!

Ai.

A força do choque me derrubou. Enquanto eu tentava recobrar os sentidos, acabei notando que a barreira na qual eu tinha me chocado era na verdade uma pessoa. Um garoto da minha idade, de cabelos brancos. Ele era maior e mais forte, mas de alguma forma tinha um rosto amigável. Eu comecei a me levantar. Acho que vou tentar me desculpar e...

" Olha por onde anda! "

Ou não. O rosto amigável tomou uma expressão de raiva e frustração. Parando pra pensar, acho que parecia mais de uma vergonha mal contida por ter caído. Um outro garoto de cabelos vermelhos apareceu rindo com um sorriso caloroso.

" Vamos, Kai, não seja tão briguento. Ei, você, você está bem? "

-- Ah, bom...

Nenhum osso quebrado e minha cabeça parece estar no lugar. É, acho que sim.


-- Estou.

Eu me levantei um segundo depois do garoto que tinha esbarrado em mim. Ele ainda parecia frustrado com a situação, então eu resolvi continuar com meu pedido de desculpas.

-- Desculpe, eu vou ter mais cuidado da próxima vez.

Ele pareceu querer abrir a boca pra falar algo, mas se acalmou e olhou para o lado para desviar do meu olhar.

" Tudo bem, contanto que não aconteça de novo. "

Pronto. Situação resolvida. Agora podia continuar meu rumo. Continuei andando pelo corredor mas a voz do de cabelo vermelho me chamou novamente.

" Ei, você é aquele estudante transferido, não é? "

Droga. Ele me reconheceu. Agora tinha certeza que falaria algo para zombar comigo por causa... Bom, haviam uma série de motivos.

" Parece que não fomos muito bem nos testes, não é? É mais difícil do que parece, não sei como os outros conseguem. "

Isso me surpreendeu. A escola era bem conhecida por manter seus alunos num nível um tanto quanto acima da média. Além disso era bem difícil entrar na escola, era necessário ter um desempenho diferenciado ou um alguém que te indicasse, geralmente pais influentes ou algo assim. A maioria dos estudantes tiravam boas notas, por isso sempre teriam como se vangloriar com os piores da escola. Não que eu seja burro ou algo do tipo... Pelo menos eu não acho que seja, mas eu não tenho muito... Tempo. De qualquer forma, minha linha de pensamento acabou não me deixando pensar numa resposta adequada para a situação e o garoto foi quem continuou a conversa.

" Seu nome é... Al... Al... "

-- Alkaev Makoto¹.

É um nome complicado. Alkaev é um nome russo que significa "Desejo". É difícil para a maioria dos Japoneses pronunciar perfeitamente a palavra. Eu sorri. Era um nome um tanto quanto constrangedor, mas me orgulhava dele. Eu decidi tornar a vida do garoto mais fácil.

-- Pode me chamar de Makoto.

O garoto sorriu. Parecia ser uma pessoa amigável. Um cordeiro no meio de lobos. Ele se apresentou em seguida.


" Meu nome é Nekogami Akakyo. E o esquentadinho do meu lado é Osakura. Osakura Kaioshi. Prazer. "

Eu sorri.

-- Prazer.

Nekogami. Osakura. Certamente lembrarei.

-- Desculpem, mas... Eu estou com um pouco de pressa, então... Nos falamos depois.

" Ah, entendi. "

Ele fez uma cara de desapontamento, mas logo em seguida aceitou a ideia. Talvez ele perguntasse qual era o motivo da minha pressa, mas antes que ele pudesse fazer isso eu já estava me virando e me despedindo

-- Até mais!

Eu corri apressado para recuperar os segundos perdidos. Eu ainda pude ouvir os dois conversando enquanto viravam a esquina do corredor.

" Então, a próxima aula é de que? "

" Bom, acho que é de... "

 

. . .

 

O dia estava ensolarado. Isso fez com que eu suasse e me cansasse mais do que o esperado. Eu parei pra dar duas boas e longas respiradas antes de entrar pela porta. Girei a chave e então estava dentro da casa. Minha casa é de um interior que segue alguns padrões típicos japoneses. Depois da porta moderna, haviam portas de deslizar. Descalcei os sapatos e fui direto pro quarto da minha irmã. Sim, eu tenho uma irmã. O nome dela é Shizuka. Ela tem belos cabelos brancos, olhos azuis, e uma pele tão clara que parece que é feita de neve.

Eu abri a porta do quarto e lá estava ela, exatamente onde havia ficado quando eu saí. Ela estava deitada na cama, coberta por um fino lençol. Eu a descobri e passei a mão pelo seu rosto para acorda-la. Sua pele parecia tanto com neve que parecia que ia desmanchar só de toca-la. Ela abriu os olhos e me olhou. Aquele olhar cortou meu coração. Sempre cortava. Shizuka. Shizuka significa "Quietude". Um nome cruel, uma maldição desde o nascimento. Minha irmã sofre de uma doença

Episódio Dois

Chiharu

 

Episódio 2

 

Shizuka se abaixou pra colher as duas flores brancas que brotavam do chão. O verde da enorme planície ao nosso redor enchia meus olhos, mas perto daquela cena era apenas como a moldura para um belo quadro. Ela levou as flores delicadamente para perto do seu fino rosto e as cheirou.

" ... oto. "

Ela ainda estava agachada quando uma brisa leve passou por nós. Seus cabelos voaram com o vento. A sensação da brisa batendo no meu rosto é boa. Muito boa.

" ... koto. "

Ela ajeitou os fios brancos atrás de sua orelha direita e olhou na minha direção. Seu sorriso e seus olhos brilharam com a luz do sol refletindo neles. Não pude evitar sorrir também.

" Makoto! "

-- Aah!

De repente eu estava num lugar completamente diferente. Olhando bem, isto é... A escola?

" Você dormiu esse período todo de novo. "

-- Droga! Será que o professor notou?

Não como se isso pudesse deixar de acontecer...

" Como eu vou saber? Eu não sou da sua classe. "

Osakura se recostou sobre a carteira vazia na minha frente e coçou a orelha esquerda desleixadamente com seu mindinho. O sono ainda deve estar me afetando para perguntar algo desse tipo para alguém que nem é da minha classe. Eu olhei para o relógio na parede e percebi o quanto tinha passado do horário. Eu teria que correr para atender Shizuka em casa e depois voltar pro colégio. Acho que vou ficar sem almoçar hoje de novo...

Que fome...

. . .


Eu fui pra casa. Shizuka estava dormindo quando eu cheguei, então eu a acordei com um leve toque no seu rosto. Levei ela até o banheiro e fiz com que ela bebesse um pouco d'água. Cozinhei algo simples dessa vez, e levei um tempo pra fazer com que ela comesse tudo. Eu tentei disfarçar enquanto minha barriga roncava, mas não sei se tive muito sucesso. Escovei os dentes dela com calma e olhei pra ver se não tinha sobrado sujeira nenhuma. Liguei a televisão, estava passando um comercial sobre uma loja de sapatos bem popular. Não acho que tenhamos uma dessas aqui na cidade. Além disso o jingle do comercial é bem irritante então seria chato se eu tivesse que passar por uma dessas e isso tocasse o tempo todo. Tenho pena dos funcionários de lá.

Depois disso voltei para a escola pra terminar o período de aulas. Como eu não tinha a intenção de entrar no meio da aula eu resolvi ficar do lado de fora e comer macarrão instantâneo de uma máquina de vendas. Sentei num banco do lado de fora da escola enquanto olhava a paisagem.

As últimas duas semanas foram meio esquisitas, desde o dia que conheci aqueles dois. Pela primeira vez desde que vim para esta escola eu sinto que fiz amigos. Nanami tem ido lá em casa de vez em quando e me dado broncas o tempo todo por eu nunca sair. Acho que eu me acostumei a ficar em casa, não há muito o que eu possa fazer.

E também...

Desde aquele dia não consegui mais encontrar aquela garota de cabelos negros.

Me achei fora do mundo na minha cabeça quando senti um toque leve no meu ombro. Por um momento gelei. Quem será? Talvez um professor ou um membro do conselho estudantil me flagrando de bobeira do lado de fora? Eu virei o rosto lentamente enquanto deixava o macarrão pendurado na minha boca balançando.

" Yo. "

Eu puxei o macarrão pra boca e então o comi, tomando uma expressão aliviada.

É Nekogami.

" Matando aula? "

-- Acho que sim...

Ele passou por mim e se sentou do outro lado do banco. Eu olhei enquanto ele abria uma lata de refrigerante e dava um ou dois goles lentamente.

-- Onde está Osakura¹?

" Ele foi no banheiro, já deve estar chegando. "


Por algum motivo, alguma coisa me chamou a atenção e eu olhei na direção do andar superior da escola. Eu vi a silhueta de Osakura. Ele parecia estar gritando com alguém. Eu não podia ver outra pessoa, mas ele estava olhando pra baixo. Estava falando com alguém baixinho? Akakyo me olhou curioso e então olhou na mesma direção que eu. Naquele momento, algo se levantou acima da altura da janela, ficando à vista.

Um.. Fantoche!?

Nekogami e eu nos olhamos, indignados.

 

. . .

 

Nós subimos depressa e atravessamos os corredores até chegarmos no lugar onde Osakura estava. Antes de dobrarmos o último corredor sabíamos que ele estava ali pela voz exaltada dele.

" Por que você está insistindo nisso? Eu já disse que não!! "

Colocamos apenas nossa cabeça pra fora do corredor para observar a cena. Osakura estava discutindo com uma garota baixinha que não se parecia nada com uma garota colegial, e só poderíamos dizer que era uma por que ela estava vestindo o uniforme da nossa escola. Pela cor do seu escudo do uniforme ela era uma aluna do primeiro ano.

Ela tinha cabelos negros que atingiam suas costas, e usava duas marias-chiquinhas pequenas dos dois lados de sua cabeça. Talvez fosse isso que a fizesse parecer tanto com uma criança. Dessa vez foi a vez dela de se pronunciar.

" Mas por que? Eu preciso de você, Onii-chan! "

Onii-chan?

" Eu não sou seu Onii-chan, droga! "

Ele olhou na nossa direção e percebeu nossa presença ali. Nekogami notou isso e saiu do nosso esconderijo. Ele olhou fixamente na direção dos fantoches da garota. Olhando bem, agora eu podia ver que eram um jacaré na mão direita e uma meia com botões nos olhos na mão esquerda.

" Ei, vocês dois, me ajudem aqui! "

" O que está acontecendo? "

Nekogami perguntou e com um tempo de reação impressionante a garota tomou a frente de Kaioshi.

" É o clube de dança com fantoches! "

" Hã? "

Tem algo muito errado nisso...

" Vocês dois são amigos do Onii-chan? Vocês dois vão entrar né? É muuuuito divertido!! "

-- Ei...

Eu desviei meu olhar da garota para Kaioshi, que estava com a mão sobre o rosto.

-- Ela é mesmo sua irmã?

" Não! Eu não conhecia essa garota até 5 minutos atrás! "

" Mas... Eu sempre quis ter um irmão tão forte e bonito como você! "

Silêncio...

" Oh, se esse é o caso, você devia ter dito antes, minha adorável irmãzinha. "

Ele disse enquanto fazia um "legal" com a mão. Eu e Nekogami olhamos pra Osakura enojados.

Que incrível e súbita mudança de temperamento.

A garota se virou de costas e cochichou pra si mesma, como se achasse que não podia ser ouvida.

" Ele caiu, Aligator-kun! "

Ela tinha falado com o fantoche em sua mão. Eu sorri e cocei o rosto enquanto Osakura olhava pra ela se segurando pra não fazer algo estúpido.

Eu tenho quase certeza que a garota está com um sorriso maléfico no rosto.

Antes que algo realmente produtivo tivesse a oportunidade de sair dali, o sinal do fim do período tocou.

-- Acho melhor irmos para a classe.

Os dois garotos concordaram. A garota permaneceu calada com uma cara emburrada, provavelmente por causa do sinal. Nós três saímos sem nos despedir.

 

. . .

 

Quando a aula acabou nós fomos em direção ao portão da escola e nos despedimos lá. Caminhamos juntos até certo ponto e então nos separamos. Eu segui em direção à minha casa. Alguns dias atrás eu tinha notado que poderia pegar um caminho mais curto se fosse por outra rua, então resolvi testar isso hoje.

Oh! Eu não sabia que tinham lojas de mangás e de música por aqui. Uma loja de conveniência por aqui também parece boa, se eu estiver com fome... Eu caminhei mais um pouco e passei por uma casa muito bonita. Ela era trabalhada numa madeira escura e tinha um jardim bem decorado, com flores e uma fonte. Eu não podia ver o interior da casa por causa de cortinas rosas de seda que cobriam as janelas.

-- Espero poder morar num lugar assim algum dia...

Eu sorri enquanto observava a casa e algo chamou minha atenção. Um barulho constante. Eu continuei caminhando pra frente até que cheguei na frente do que se revelou ser um canteiro de obras. O que será que estão construindo aqui?

Enquanto eu me perguntava sobre o que aquilo se tratava, eu pude ouvir o grito alto, porém distante de um homem.

" CUIDADO! "

Eu não sei que tipo de reflexo eu tive, mas eu notei uma sombra crescendo logo abaixo de mim. Num movimento rápido, dei um passo pro lado à medida que um objeto quase me atingiu. Eu me desequilibrei e caí pra trás. Eu abri os olhos lentamente para examinar o que quase tinha tirado minha vida. Aquilo é...

Uma droga de uma picareta!?

Um homem forte e alto o bastante pra tapar o sol, com pele dourada, com roupa de operário aberta numa gola V cheio de cabelos no peito e barba negra se aproximou de mim. Ele colocou as mãos na cintura ao ver que eu estava vivo e riu alto.

" HAHAHAHAHA! Você tem bons reflexos, garoto! "

-- VOCÊ TÁ FICANDO MALUCO!?

Eu me levantei exaltado.

-- Aquela picareta podia ter me matado!

Ele se abaixou e pegou a picareta, que, surpreendentemente, ainda estava inteira e a apoiou no ombro.

" Vamos, vamos, ela simplesmente escorregou. "

-- Escorregou!?

Eu sinceramente não sei que tipo de monstro seria capaz de arremessar aquilo tão longe mesmo que fosse de propósito.

" Está tudo bem não é? Então sem reclamações! Vamos, eu vou te pagar uma bebida. "

-- Eu passo.

Eu me levantei e limpei minhas roupas e então continuei caminhando. Ele apenas ficou me observando enquanto eu ia embora.

Eu não sei dizer se isso foi muito azar ou muita sorte.

De qualquer forma eu continuei o caminho, me acalmando aos poucos. Fiquei um pouco assustado quando dobrei numa rua errada e quase me perdi, mas acabei encontrando o caminho certo e cheguei em casa. Eu abri a fechadura da porta e entrei dentro de casa, quando fui surpreendido por uma figura feminina no meio da minha sala.

-- Aah!

" Makoto! O que você pensa que está fazendo em casa!? "

-- Nana... Você chegou aqui bem rápido não foi?

Isso é um problema. Eu esperava poder chegar antes dela em casa e fingir estar dormindo pra ela não brigar comigo. Eu não sabia direito pra onde eu olhar. Ela estava com um lenço amarrado na cabeça, um avental sobre as roupas do colégio e uma vassoura na mão. Esse último objeto me pareceu bastante perigoso.

" Eu já falei que você tem que aproveitar pra fazer algo nos dias que eu vier aqui não foi? Isso estraga totalmente a razão de eu estar fazendo isso! "

Eu desviei o olhar.

-- Mesmo que você diga isso, não acho que tenha algo pra eu fazer.

" Seus amigos nunca te chamaram pra fazer nada? "

Bom, de fato eles me chamaram várias vezes, e eu recusei por que tinha que voltar pra casa. Sem poder discordar eu apenas cocei a parte de trás da cabeça enquanto olhava pra um ponto fixo na parede.

" Ah, chega, hoje você vai sair! "

-- E-ei!

Antes que eu pudesse reagir, fui enxotado à vassouradas pra fora da minha própria casa.

-- E agora...

Eu suspirei e olhei para o céu. Se eu voltasse para a escola agora talvez eu pudesse assistir as garotas do clube de tênis jogando, ou rir com as confusões do time de futebol. Eu ajeitei meus sapatos batendo eles na calçada e fui em direção à escola novamente.

 

. . .

 

Minhas pernas estão protestando por causa da vinda extra que fiz hoje, mas eu finalmente cheguei no portão da escola. Eu o atravessei e observei o movimento bem fraco de pessoas na área frontal. Fui até a quadra de tênis, mas, por algum motivo, não havia ninguém treinando lá. Eu me aproximei de uma placa que dizia: 'As atividades estão suspensas por hoje, desculpem pessoal <3'. Provavelmente foi uma garota quem escreveu. Eu suspirei, tendo meus planos frustrados.

Eu resolvi entrar no prédio e dar uma olhada rápida nas salas dos outros clubes. Eu ouvi um barulho de instrumentos tocando. A escola tem uma banda? Eu fui na direção do barulho e me surpreendi com o que na verdade se revelou ser o clube de teatro. Eu olhei pela janela. Aparentemente estavam fazendo alguma cena de ação, a música se tratava de um rock instrumental bem agitado. Uma garota percebeu minha presença do outro lado da porta e olhou na minha direção. Eu me afastei rapidamente da janela e andei a passos rápidos até virar o corredor.

Eu pude ouvir o som da porta deslizando atrás de mim, mas não virei para trás.

Eu continuei caminhando sem rumo pelos corredores. Aproveitei pra ir no banheiro. Estava vazio então eu resolvi usar o urinol. Pouco depois, dois garotos entraram conversando no banheiro e embora eu não ache que estivessem me espiando, eu fiquei com aquela sensação desconfortável de quem está sendo observado. Olhando bem, eu pude notar que aqueles dois eram da mesma classe que eu. Quando eu sair eles certamente vão comentar algo sobre mim... Tsc. Que droga.

. . .

Vários minutos se passaram sem que eu achasse nada de muito interessante pra fazer. O céu estava escarlate por causa do fim da tarde, diferente do seu azul habitual. Eu olhei sem muitos motivos para o corredor ao meu lado e uma placa bastante colorida pela primeira vez me chamou a atenção. Eu caminhei com calma até ela e li o que estava escrito.

Clube de dança com fantoches.

Era sobre isso que aquela garota de mais cedo estava falando? Eu sinceramente não levei isso muito a sério. Realmente existe um clube assim? Por pura curiosidade eu abri a porta do clube.

-- Com licença...

A visão que eu tive na verdade foi bem melancólica e diferente do que eu esperava. A garota de mais cedo estava sentada numa carteira com dois fantoches diferentes nas mãos, olhando pra baixo, fixamente, como se estivesse extremamente decepcionada com algo. Ela me pareceu alguém cheio de energia e que não se abateria mesmo que algo muito ruim lhe acontecesse. É o tipo de impressão que alguém baixinha e agitada passa pra você, eu acho. No entanto quem eu encontrei ali foi uma pessoa abatida e apática.

Eu enchi o peito de ar para falar algo, mas o semblante da garota se iluminou no momento que ela me viu. Ela abriu um largo sorriso como se a tristeza que estivesse sobre ela jamais tivesse existido. O levantar dela fez com que a cadeira se arrastasse uns 2 metros pra trás e ela praticamente correu na minha direção.

" Bem-vindo ao clube de dança com fantoches! Estou feliz que você tenha conseguido vir! "

Ela apertou minhas mãos mesmo com os fantoches ocupando as dela. Além disso, ela fez soar como se tivesse me convidado pra um casamento ou algo do tipo...

" Aah! Você estava com o Onii-Chan mais cedo não foi? Onde ele está? E o garoto estranho de cabelos vermelhos? "

-- Ah..

Eu cocei a cabeça.

-- Eles não puderam vir, então acho que hoje você vai ter que se contentar só comigo.

" Entendi! "

Ela não pareceu muito decepcionada com a notícia.

Um silêncio desconcertante tomou conta do lugar enquanto ela simplesmente olhava pra mim sorrindo, esperando por algo. Ela quer que eu pergunte algo pra ela? Eu desviei um pouco o olhar pra pensar.

-- Então... Como funciona uma dança com fantoches?

Ela abriu os dentes e fechou os olhos num sorriso.

" Hee hee! É muito fácil. Você faz isso, isso, e isso... Ah e depois isso e isso... "

Ela fez uma série de movimentos no mínimo estranhos que eu não consegui acompanhar muito bem. Então ela olhou pra mim com um rosto determinado e perguntou:

" Entendeu? "

-- Não exatamente...

Eu não sabia direito se sorria ou se fazia uma cara de quem estava sendo feito de idiota.

Ela pegou na minha mão e me puxou para o centro da sala.

" Pra você entender você tem que fazer também. Venha!. "

Ela colocou dois fantoches nas minhas mãos. Um era um lobo cinzento e o outro era uma joaninha. Então ela começou a fazer os movimentos de forma mais lenta. Eu fiquei parado, olhando. Ela começou a me encorajar a tentar e eu acabei fazendo meio que sem vontade.

Com o tempo eu acabei pegando o jeito, e a energia da garota me encorajou a fazer movimentos mais extensos e parecidos com o que ela estava fazendo. Hahaha! Realmente devo estar parecendo um idiota agora.

À medida que eu pensava isso eu dava risada de mim mesmo. Ela olhou pra mim e riu de volta. Antes que eu percebesse eu estava me divertindo. A verdade é que desde muitos anos que eu não tenho oportunidade de fazer coisas idiotas como essa, então a criança que ainda vive em mim ficou muito agradecida.

Nós dois criamos novas sequências e continuamos fazendo isso por vários e vários minutos. Ficamos exaustos. Eu decidi descer e pagar uma bebida pra ela. Eu escolhi um refrigerante de limão, e ela escolheu uma caixinha de suco de laranja. Nós dois sentamos no banco que eu sentei com Kaioshi e Akakyo mais cedo. Ela recostou as costas no banco e balançou as pernas, que por pouco não tocavam o chão, enquanto bebia o suco pelo canudo.

-- Eu ainda não sei seu nome.

Ela desviou o olhar do que quer que estivesse olhando e olhou na minha direção.

" É Hanabi. Yuujimura Hanabi. "

-- Entendi. Meu nome é Alkaev Makoto.

" Ehh! Que nome difícil! "

-- É... É sim. Pode me chamar de Makoto.

" Entendi! Makoto-san. "

O pessoal do clube de corrida passou pelo lugar onde estávamos sentados. As atividades dos clubes já estavam pra acabar, então aquela devia ser a última volta que eles dariam na escola.

-- Yuujimura-san, posso te perguntar por que você estava matando aula hoje?

" Hum... "

Ela não me pareceu muito confortável com a pergunta então deu um longo gole no suco antes de responder.

" Eu briguei com o professor! "

Ela levantou o rosto e fez uma cara orgulhosa.

-- Isso é sério?

" Sim! Ele estava me dando bronca então eu saí da sala. "

-- Você vai arranjar um problemão... Ouvir e fingir que aceita o que seus professores te dizem é melhor que confrontá-los e se meter em confusão por causa disso.

Ela colocou a boca no canudo de novo e bebeu novamente. A caixinha fez um barulho de ar e ela apertou para conseguir beber um pouco mais do líquido.

" Além disso eu tinha que arranjar membros pro clube de dança com fantoches. "

Ela ignorou completamente o que eu disse. Acho que mesmo se eu continuar a tentar dar sermão nela ela não vai me ouvir. No fim das contas, eu acabei de conhecê-la. Não acho que eu devia estar fazendo isso, de qualquer forma.

Parando para pensar, ela disse que tinha que arranjar membros... Se eu não tivesse ido hoje ela estaria sozinha, lá, naquela sala. Quer dizer que não há nenhum membro além dela. O tipo de clube particularmente também não é muito atrativo, parece que é alguma brincadeira que ninguém está disposto a cair. Há quanto tempo ela anda fazendo isso? Ficando sozinha naquela sala escura...

Acordei dos meus pensamentos quando ouvimos o sinal tocar. Ela saltou do banco e jogou a caixinha no lixo. Eu joguei minha lata lá logo em seguida, e então ficamos de pé um de frente para o outro.

" Makoto-san, obrigada por ir ao clube hoje. Foi muito divertido! "

Eu cocei a cabeça sem jeito.

-- Que nada! Eu também me diverti.

" Eu tenho que voltar pra casa agora. Minha mãe vai ficar com raiva se eu chegar muito tarde. "

-- Sim. Até mais então.

" Sim! "

Ela se virou de lado e balançou a mão num gesto de despedida. Então ela correu na direção do portão, até que eu a perdi de vista.

Alguns segundos depois, eu comecei a caminhar na mesma direção.

 

. . .

 

Nanami fechou a porta do quarto de Shizuka enquanto dava um tchauzinho com a mão. Eu pude ver pela abertura que Shizuka sorriu em resposta.

Nós dois saímos de casa e começamos a caminhar lado a lado pela rua escura.

" E então, o que você fez hoje à tarde? "

-- Participei das atividades de um clube na escola.

" Ah! Então você entrou pra um clube? "

-- Eu não acho que eu tenha entrado, mas...

" E então, que clube foi? "

Eu corei com vergonha do que estava prestes a falar. A voz saiu mais baixa do que eu gostaria.

-- Clube de dança com fantoches...

" Hã? "

Ela se aproximou pra ouvir direito. Eu deixei a vergonha explodir e falei bem mais alto.

-- Clube de dança com fantoches!!

Eu pude notar um garoto dentro de uma casa da vizinhança se virar pra confirmar o que tinha acabado de ouvir. Ele deu de ombros como se não se importasse e se virou para a televisão novamente.

" Haha... Hahahaha! "

Nanami começou a rir de mim enquanto enxugava as lágrimas que pretendiam se formar nos seus olhos.

" Você não pode estar falando sério! "

Eu não respondi e apenas fiquei cabisbaixo enquanto caminhava. Ela continuou olhando pra mim e sorrindo.

" Mas você parece ter se divertido. Que bom. "

Eu corei novamente e resmunguei com ela.

-- Pare de me tratar como se fosse minha mãe.

Ai! Eu senti um beliscão na minha bochecha direita.

" E você pare de ser tão resmungão! "

 

. . .

 

Nós continuamos conversando a medida que nos aproximávamos da casa dela. Nana parecia muito feliz em estar cuidando de Shizuka. Eu também estava. Não que eu queira me livrar dela, mas Shizuka e eu pudemos rever nossa melhor amiga de infância, e passamos algum tempo juntos, também. Além disso, eu não estou usando muito o tempo livre que ganhei agora, mas agora tenho a oportunidade de usá-lo para aproveitar o fim da minha juventude. Daqui a uns anos eu vou estar preocupado com trabalho e não vou ter muito tempo... Não posso ficar dependendo do dinheiro que meus tios me mandam pra sempre. Além disso, fico preocupado em como eu vou conseguir cuidar de Shizuka... Certamente não vou poder ficar saindo do trabalho o tempo todo como faço na escola. Será que eu estou esperando por um milagre?

Não. Não pense nisso. Vai dar certo.

Vai tudo dar certo.

Nana e eu finalmente chegamos na frente da casa dela. Eu a abracei enquanto nos despedíamos.

" Minha mãe falou pra você vir nos visitar qualquer dia. Ela quer conversar sobre bastante coisa com você. "

-- Sim. Qualquer dia eu venho aqui. Chame ela pra ver a Shizuka também, qualquer hora.

" Sim. "

Ela subiu os degraus e acenou lá de cima pra mim. Eu acenei de volta e esperei ela entrar para começar o caminho de volta.

Passos.

. . .

Eu passei pela mesma casa da última vez. Eu olhei para o muro onde a garota estava. Novamente, eu não a encontrei. No entanto, algo no ar estava diferente da última vez.

Tem alguém atrás de mim?

Eu olhei pra trás e pensei ter visto um vulto se mover. Eu continuei olhando naquela direção por alguns instantes. Nada. Eu simplesmente continuei meu caminho com cautela. Felizmente, nada de ruim aconteceu e eu pude embarcar no metrô e voltar pra casa.

. . .

Hoje o dia foi bem agitado, com aquela garota nova. Yuujimura Hanabi. Tá aí um espécime que não se vê todo dia. Eu entrei em casa e tirei os sapatos. Eu queria simplesmente me jogar no sofá e descansar as pernas, mas tinha que avisar a Shizuka que eu cheguei. Eu atravessei a casa sem iluminação. O corredor era a parte mais escura, iluminado apenas pela lua cheia do lado de fora. Eu abri a porta e me deparei com o corpo de uma garota debruçado sobre o chão. A cama estava completamente desarrumada e Shizuka estava imóvel com uma expressão muito assustada.

-- Shizuka!

Eu corri até ela, e me agachei para me certificar que ela estava bem. Meu coração acelerou com aquela cena.

Desespero.

Pânico.

Acalme-se...

A culpa é dela...

Não...

A culpa é minha...

Vamos, acalme-se..!

Shizuka...

Me desculpe.

 

. . .

 

 

Chiharu - 02

Desculpe.

Chiharu

 

Episódio 2

 

Shizuka se abaixou pra colher as duas flores brancas que brotavam do chão. O verde da enorme planície ao nosso redor enchia meus olhos, mas perto daquela cena era apenas como a moldura para um belo quadro. Ela levou as flores delicadamente para perto do seu fino rosto e as cheirou.

" ... oto. "

Ela ainda estava agachada quando uma brisa leve passou por nós. Seus cabelos voaram com o vento. A sensação da brisa batendo no meu rosto é boa. Muito boa.

" ... koto. "

Ela ajeitou os fios brancos atrás de sua orelha direita e olhou na minha direção. Seu sorriso e seus olhos brilharam com a luz do sol refletindo neles. Não pude evitar sorrir também.

" Makoto! "

-- Aah!

De repente eu estava num lugar completamente diferente. Olhando bem, isto é... A escola?

" Você dormiu esse período todo de novo. "

-- Droga! Será que o professor notou?

Não como se isso pudesse deixar de acontecer...

" Como eu vou saber? Eu não sou da sua classe. "

Osakura se recostou sobre a carteira vazia na minha frente e coçou a orelha esquerda desleixadamente com seu mindinho. O sono ainda deve estar me afetando para perguntar algo desse tipo para alguém que nem é da minha classe. Eu olhei para o relógio na parede e percebi o quanto tinha passado do horário. Eu teria que correr para atender Shizuka em casa e depois voltar pro colégio. Acho que vou ficar sem almoçar hoje de novo...

Que fome...

. . .


Eu fui pra casa. Shizuka estava dormindo quando eu cheguei, então eu a acordei com um leve toque no seu rosto. Levei ela até o banheiro e fiz com que ela bebesse um pouco d'água. Cozinhei algo simples dessa vez, e levei um tempo pra fazer com que ela comesse tudo. Eu tentei disfarçar enquanto minha barriga roncava, mas não sei se tive muito sucesso. Escovei os dentes dela com calma e olhei pra ver se não tinha sobrado sujeira nenhuma. Liguei a televisão, estava passando um comercial sobre uma loja de sapatos bem popular. Não acho que tenhamos uma dessas aqui na cidade. Além disso o jingle do comercial é bem irritante então seria chato se eu tivesse que passar por uma dessas e isso tocasse o tempo todo. Tenho pena dos funcionários de lá.

Depois disso voltei para a escola pra terminar o período de aulas. Como eu não tinha a intenção de entrar no meio da aula eu resolvi ficar do lado de fora e comer macarrão instantâneo de uma máquina de vendas. Sentei num banco do lado de fora da escola enquanto olhava a paisagem.

As últimas duas semanas foram meio esquisitas, desde o dia que conheci aqueles dois. Pela primeira vez desde que vim para esta escola eu sinto que fiz amigos. Nanami tem ido lá em casa de vez em quando e me dado broncas o tempo todo por eu nunca sair. Acho que eu me acostumei a ficar em casa, não há muito o que eu possa fazer.

E também...

Desde aquele dia não consegui mais encontrar aquela garota de cabelos negros.

Me achei fora do mundo na minha cabeça quando senti um toque leve no meu ombro. Por um momento gelei. Quem será? Talvez um professor ou um membro do conselho estudantil me flagrando de bobeira do lado de fora? Eu virei o rosto lentamente enquanto deixava o macarrão pendurado na minha boca balançando.

" Yo. "

Eu puxei o macarrão pra boca e então o comi, tomando uma expressão aliviada.

É Nekogami.

" Matando aula? "

-- Acho que sim...

Ele passou por mim e se sentou do outro lado do banco. Eu olhei enquanto ele abria uma lata de refrigerante e dava um ou dois goles lentamente.

-- Onde está Osakura¹?

" Ele foi no banheiro, já deve estar chegando. "


Por algum motivo, alguma coisa me chamou a atenção e eu olhei na direção do andar superior da escola. Eu vi a silhueta de Osakura. Ele parecia estar gritando com alguém. Eu não podia ver outra pessoa, mas ele estava olhando pra baixo. Estava falando com alguém baixinho? Akakyo me olhou curioso e então olhou na mesma direção que eu. Naquele momento, algo se levantou acima da altura da janela, ficando à vista.

Um.. Fantoche!?

Nekogami e eu nos olhamos, indignados.

 

. . .

 

Nós subimos depressa e atravessamos os corredores até chegarmos no lugar onde Osakura estava. Antes de dobrarmos o último corredor sabíamos que ele estava ali pela voz exaltada dele.

" Por que você está insistindo nisso? Eu já disse que não!! "

Colocamos apenas nossa cabeça pra fora do corredor para observar a cena. Osakura estava discutindo com uma garota baixinha que não se parecia nada com uma garota colegial, e só poderíamos dizer que era uma por que ela estava vestindo o uniforme da nossa escola. Pela cor do seu escudo do uniforme ela era uma aluna do primeiro ano.

Ela tinha cabelos negros que atingiam suas costas, e usava duas marias-chiquinhas pequenas dos dois lados de sua cabeça. Talvez fosse isso que a fizesse parecer tanto com uma criança. Dessa vez foi a vez dela de se pronunciar.

" Mas por que? Eu preciso de você, Onii-chan! "

Onii-chan?

" Eu não sou seu Onii-chan, droga! "

Ele olhou na nossa direção e percebeu nossa presença ali. Nekogami notou isso e saiu do nosso esconderijo. Ele olhou fixamente na direção dos fantoches da garota. Olhando bem, agora eu podia ver que eram um jacaré na mão direita e uma meia com botões nos olhos na mão esquerda.

" Ei, vocês dois, me ajudem aqui! "

" O que está acontecendo? "

Nekogami perguntou e com um tempo de reação impressionante a garota tomou a frente de Kaioshi.

" É o clube de dança com fantoches! "

" Hã? "

Tem algo muito errado nisso...

" Vocês dois são amigos do Onii-chan? Vocês dois vão entrar né? É muuuuito divertido!! "

-- Ei...

Eu desviei meu olhar da garota para Kaioshi, que estava com a mão sobre o rosto.

-- Ela é mesmo sua irmã?

" Não! Eu não conhecia essa garota até 5 minutos atrás! "

" Mas... Eu sempre quis ter um irmão tão forte e bonito como você! "

Silêncio...

" Oh, se esse é o caso, você devia ter dito antes, minha adorável irmãzinha. "

Ele disse enquanto fazia um "legal" com a mão. Eu e Nekogami olhamos pra Osakura enojados.

Que incrível e súbita mudança de temperamento.

A garota se virou de costas e cochichou pra si mesma, como se achasse que não podia ser ouvida.

" Ele caiu, Aligator-kun! "

Ela tinha falado com o fantoche em sua mão. Eu sorri e cocei o rosto enquanto Osakura olhava pra ela se segurando pra não fazer algo estúpido.

Eu tenho quase certeza que a garota está com um sorriso maléfico no rosto.

Antes que algo realmente produtivo tivesse a oportunidade de sair dali, o sinal do fim do período tocou.

-- Acho melhor irmos para a classe.

Os dois garotos concordaram. A garota permaneceu calada com uma cara emburrada, provavelmente por causa do sinal. Nós três saímos sem nos despedir.

 

. . .

 

Quando a aula acabou nós fomos em direção ao portão da escola e nos despedimos lá. Caminhamos juntos até certo ponto e então nos separamos. Eu segui em direção à minha casa. Alguns dias atrás eu tinha notado que poderia pegar um caminho mais curto se fosse por outra rua, então resolvi testar isso hoje.

Oh! Eu não sabia que tinham lojas de mangás e de música por aqui. Uma loja de conveniência por aqui também parece boa, se eu estiver com fome... Eu caminhei mais um pouco e passei por uma casa muito bonita. Ela era trabalhada numa madeira escura e tinha um jardim bem decorado, com flores e uma fonte. Eu não podia ver o interior da casa por causa de cortinas rosas de seda que cobriam as janelas.

-- Espero poder morar num lugar assim algum dia...

Eu sorri enquanto observava a casa e algo chamou minha atenção. Um barulho constante. Eu continuei caminhando pra frente até que cheguei na frente do que se revelou ser um canteiro de obras. O que será que estão construindo aqui?

Enquanto eu me perguntava sobre o que aquilo se tratava, eu pude ouvir o grito alto, porém distante de um homem.

" CUIDADO! "

Eu não sei que tipo de reflexo eu tive, mas eu notei uma sombra crescendo logo abaixo de mim. Num movimento rápido, dei um passo pro lado à medida que um objeto quase me atingiu. Eu me desequilibrei e caí pra trás. Eu abri os olhos lentamente para examinar o que quase tinha tirado minha vida. Aquilo é...

Uma droga de uma picareta!?

Um homem forte e alto o bastante pra tapar o sol, com pele dourada, com roupa de operário aberta numa gola V cheio de cabelos no peito e barba negra se aproximou de mim. Ele colocou as mãos na cintura ao ver que eu estava vivo e riu alto.

" HAHAHAHAHA! Você tem bons reflexos, garoto! "

-- VOCÊ TÁ FICANDO MALUCO!?

Eu me levantei exaltado.

-- Aquela picareta podia ter me matado!

Ele se abaixou e pegou a picareta, que, surpreendentemente, ainda estava inteira e a apoiou no ombro.

" Vamos, vamos, ela simplesmente escorregou. "

-- Escorregou!?

Eu sinceramente não sei que tipo de monstro seria capaz de arremessar aquilo tão longe mesmo que fosse de propósito.

" Está tudo bem não é? Então sem reclamações! Vamos, eu vou te pagar uma bebida. "

-- Eu passo.

Eu me levantei e limpei minhas roupas e então continuei caminhando. Ele apenas ficou me observando enquanto eu ia embora.

Eu não sei dizer se isso foi muito azar ou muita sorte.

De qualquer forma eu continuei o caminho, me acalmando aos poucos. Fiquei um pouco assustado quando dobrei numa rua errada e quase me perdi, mas acabei encontrando o caminho certo e cheguei em casa. Eu abri a fechadura da porta e entrei dentro de casa, quando fui surpreendido por uma figura feminina no meio da minha sala.

-- Aah!

" Makoto! O que você pensa que está fazendo em casa!? "

-- Nana... Você chegou aqui bem rápido não foi?

Isso é um problema. Eu esperava poder chegar antes dela em casa e fingir estar dormindo pra ela não brigar comigo. Eu não sabia direito pra onde eu olhar. Ela estava com um lenço amarrado na cabeça, um avental sobre as roupas do colégio e uma vassoura na mão. Esse último objeto me pareceu bastante perigoso.

" Eu já falei que você tem que aproveitar pra fazer algo nos dias que eu vier aqui não foi? Isso estraga totalmente a razão de eu estar fazendo isso! "

Eu desviei o olhar.

-- Mesmo que você diga isso, não acho que tenha algo pra eu fazer.

" Seus amigos nunca te chamaram pra fazer nada? "

Bom, de fato eles me chamaram várias vezes, e eu recusei por que tinha que voltar pra casa. Sem poder discordar eu apenas cocei a parte de trás da cabeça enquanto olhava pra um ponto fixo na parede.

" Ah, chega, hoje você vai sair! "

-- E-ei!

Antes que eu pudesse reagir, fui enxotado à vassouradas pra fora da minha própria casa.

-- E agora...

Eu suspirei e olhei para o céu. Se eu voltasse para a escola agora talvez eu pudesse assistir as garotas do clube de tênis jogando, ou rir com as confusões do time de futebol. Eu ajeitei meus sapatos batendo eles na calçada e fui em direção à escola novamente.

 

. . .

 

Minhas pernas estão protestando por causa da vinda extra que fiz hoje, mas eu finalmente cheguei no portão da escola. Eu o atravessei e observei o movimento bem fraco de pessoas na área frontal. Fui até a quadra de tênis, mas, por algum motivo, não havia ninguém treinando lá. Eu me aproximei de uma placa que dizia: 'As atividades estão suspensas por hoje, desculpem pessoal <3'. Provavelmente foi uma garota quem escreveu. Eu suspirei, tendo meus planos frustrados.

Eu resolvi entrar no prédio e dar uma olhada rápida nas salas dos outros clubes. Eu ouvi um barulho de instrumentos tocando. A escola tem uma banda? Eu fui na direção do barulho e me surpreendi com o que na verdade se revelou ser o clube de teatro. Eu olhei pela janela. Aparentemente estavam fazendo alguma cena de ação, a música se tratava de um rock instrumental bem agitado. Uma garota percebeu minha presença do outro lado da porta e olhou na minha direção. Eu me afastei rapidamente da janela e andei a passos rápidos até virar o corredor.

Eu pude ouvir o som da porta deslizando atrás de mim, mas não virei para trás.

Eu continuei caminhando sem rumo pelos corredores. Aproveitei pra ir no banheiro. Estava vazio então eu resolvi usar o urinol. Pouco depois, dois garotos entraram conversando no banheiro e embora eu não ache que estivessem me espiando, eu fiquei com aquela sensação desconfortável de quem está sendo observado. Olhando bem, eu pude notar que aqueles dois eram da mesma classe que eu. Quando eu sair eles certamente vão comentar algo sobre mim... Tsc. Que droga.

. . .

Vários minutos se passaram sem que eu achasse nada de muito interessante pra fazer. O céu estava escarlate por causa do fim da tarde, diferente do seu azul habitual. Eu olhei sem muitos motivos para o corredor ao meu lado e uma placa bastante colorida pela primeira vez me chamou a atenção. Eu caminhei com calma até ela e li o que estava escrito.

Clube de dança com fantoches.

Era sobre isso que aquela garota de mais cedo estava falando? Eu sinceramente não levei isso muito a sério. Realmente existe um clube assim? Por pura curiosidade eu abri a porta do clube.

-- Com licença...

A visão que eu tive na verdade foi bem melancólica e diferente do que eu esperava. A garota de mais cedo estava sentada numa carteira com dois fantoches diferentes nas mãos, olhando pra baixo, fixamente, como se estivesse extremamente decepcionada com algo. Ela me pareceu alguém cheio de energia e que não se abateria mesmo que algo muito ruim lhe acontecesse. É o tipo de impressão que alguém baixinha e agitada passa pra você, eu acho. No entanto quem eu encontrei ali foi uma pessoa abatida e apática.

Eu enchi o peito de ar para falar algo, mas o semblante da garota se iluminou no momento que ela me viu. Ela abriu um largo sorriso como se a tristeza que estivesse sobre ela jamais tivesse existido. O levantar dela fez com que a cadeira se arrastasse uns 2 metros pra trás e ela praticamente correu na minha direção.

" Bem-vindo ao clube de dança com fantoches! Estou feliz que você tenha conseguido vir! "

Ela apertou minhas mãos mesmo com os fantoches ocupando as dela. Além disso, ela fez soar como se tivesse me convidado pra um casamento ou algo do tipo...

" Aah! Você estava com o Onii-Chan mais cedo não foi? Onde ele está? E o garoto estranho de cabelos vermelhos? "

-- Ah..

Eu cocei a cabeça.

-- Eles não puderam vir, então acho que hoje você vai ter que se contentar só comigo.

" Entendi! "

Ela não pareceu muito decepcionada com a notícia.

Um silêncio desconcertante tomou conta do lugar enquanto ela simplesmente olhava pra mim sorrindo, esperando por algo. Ela quer que eu pergunte algo pra ela? Eu desviei um pouco o olhar pra pensar.

-- Então... Como funciona uma dança com fantoches?

Ela abriu os dentes e fechou os olhos num sorriso.

" Hee hee! É muito fácil. Você faz isso, isso, e isso... Ah e depois isso e isso... "

Ela fez uma série de movimentos no mínimo estranhos que eu não consegui acompanhar muito bem. Então ela olhou pra mim com um rosto determinado e perguntou:

" Entendeu? "

-- Não exatamente...

Eu não sabia direito se sorria ou se fazia uma cara de quem estava sendo feito de idiota.

Ela pegou na minha mão e me puxou para o centro da sala.

" Pra você entender você tem que fazer também. Venha!. "

Ela colocou dois fantoches nas minhas mãos. Um era um lobo cinzento e o outro era uma joaninha. Então ela começou a fazer os movimentos de forma mais lenta. Eu fiquei parado, olhando. Ela começou a me encorajar a tentar e eu acabei fazendo meio que sem vontade.

Com o tempo eu acabei pegando o jeito, e a energia da garota me encorajou a fazer movimentos mais extensos e parecidos com o que ela estava fazendo. Hahaha! Realmente devo estar parecendo um idiota agora.

À medida que eu pensava isso eu dava risada de mim mesmo. Ela olhou pra mim e riu de volta. Antes que eu percebesse eu estava me divertindo. A verdade é que desde muitos anos que eu não tenho oportunidade de fazer coisas idiotas como essa, então a criança que ainda vive em mim ficou muito agradecida.

Nós dois criamos novas sequências e continuamos fazendo isso por vários e vários minutos. Ficamos exaustos. Eu decidi descer e pagar uma bebida pra ela. Eu escolhi um refrigerante de limão, e ela escolheu uma caixinha de suco de laranja. Nós dois sentamos no banco que eu sentei com Kaioshi e Akakyo mais cedo. Ela recostou as costas no banco e balançou as pernas, que por pouco não tocavam o chão, enquanto bebia o suco pelo canudo.

-- Eu ainda não sei seu nome.

Ela desviou o olhar do que quer que estivesse olhando e olhou na minha direção.

" É Hanabi. Yuujimura Hanabi. "

-- Entendi. Meu nome é Alkaev Makoto.

" Ehh! Que nome difícil! "

-- É... É sim. Pode me chamar de Makoto.

" Entendi! Makoto-san. "

O pessoal do clube de corrida passou pelo lugar onde estávamos sentados. As atividades dos clubes já estavam pra acabar, então aquela devia ser a última volta que eles dariam na escola.

-- Yuujimura-san, posso te perguntar por que você estava matando aula hoje?

" Hum... "

Ela não me pareceu muito confortável com a pergunta então deu um longo gole no suco antes de responder.

" Eu briguei com o professor! "

Ela levantou o rosto e fez uma cara orgulhosa.

-- Isso é sério?

" Sim! Ele estava me dando bronca então eu saí da sala. "

-- Você vai arranjar um problemão... Ouvir e fingir que aceita o que seus professores te dizem é melhor que confrontá-los e se meter em confusão por causa disso.

Ela colocou a boca no canudo de novo e bebeu novamente. A caixinha fez um barulho de ar e ela apertou para conseguir beber um pouco mais do líquido.

" Além disso eu tinha que arranjar membros pro clube de dança com fantoches. "

Ela ignorou completamente o que eu disse. Acho que mesmo se eu continuar a tentar dar sermão nela ela não vai me ouvir. No fim das contas, eu acabei de conhecê-la. Não acho que eu devia estar fazendo isso, de qualquer forma.

Parando para pensar, ela disse que tinha que arranjar membros... Se eu não tivesse ido hoje ela estaria sozinha, lá, naquela sala. Quer dizer que não há nenhum membro além dela. O tipo de clube particularmente também não é muito atrativo, parece que é alguma brincadeira que ninguém está disposto a cair. Há quanto tempo ela anda fazendo isso? Ficando sozinha naquela sala escura...

Acordei dos meus pensamentos quando ouvimos o sinal tocar. Ela saltou do banco e jogou a caixinha no lixo. Eu joguei minha lata lá logo em seguida, e então ficamos de pé um de frente para o outro.

" Makoto-san, obrigada por ir ao clube hoje. Foi muito divertido! "

Eu cocei a cabeça sem jeito.

-- Que nada! Eu também me diverti.

" Eu tenho que voltar pra casa agora. Minha mãe vai ficar com raiva se eu chegar muito tarde. "

-- Sim. Até mais então.

" Sim! "

Ela se virou de lado e balançou a mão num gesto de despedida. Então ela correu na direção do portão, até que eu a perdi de vista.

Alguns segundos depois, eu comecei a caminhar na mesma direção.

 

. . .

 

Nanami fechou a porta do quarto de Shizuka enquanto dava um tchauzinho com a mão. Eu pude ver pela abertura que Shizuka sorriu em resposta.

Nós dois saímos de casa e começamos a caminhar lado a lado pela rua escura.

" E então, o que você fez hoje à tarde? "

-- Participei das atividades de um clube na escola.

" Ah! Então você entrou pra um clube? "

-- Eu não acho que eu tenha entrado, mas...

" E então, que clube foi? "

Eu corei com vergonha do que estava prestes a falar. A voz saiu mais baixa do que eu gostaria.

-- Clube de dança com fantoches...

" Hã? "

Ela se aproximou pra ouvir direito. Eu deixei a vergonha explodir e falei bem mais alto.

-- Clube de dança com fantoches!!

Eu pude notar um garoto dentro de uma casa da vizinhança se virar pra confirmar o que tinha acabado de ouvir. Ele deu de ombros como se não se importasse e se virou para a televisão novamente.

" Haha... Hahahaha! "

Nanami começou a rir de mim enquanto enxugava as lágrimas que pretendiam se formar nos seus olhos.

" Você não pode estar falando sério! "

Eu não respondi e apenas fiquei cabisbaixo enquanto caminhava. Ela continuou olhando pra mim e sorrindo.

" Mas você parece ter se divertido. Que bom. "

Eu corei novamente e resmunguei com ela.

-- Pare de me tratar como se fosse minha mãe.

Ai! Eu senti um beliscão na minha bochecha direita.

" E você pare de ser tão resmungão! "

 

. . .

 

Nós continuamos conversando a medida que nos aproximávamos da casa dela. Nana parecia muito feliz em estar cuidando de Shizuka. Eu também estava. Não que eu queira me livrar dela, mas Shizuka e eu pudemos rever nossa melhor amiga de infância, e passamos algum tempo juntos, também. Além disso, eu não estou usando muito o tempo livre que ganhei agora, mas agora tenho a oportunidade de usá-lo para aproveitar o fim da minha juventude. Daqui a uns anos eu vou estar preocupado com trabalho e não vou ter muito tempo... Não posso ficar dependendo do dinheiro que meus tios me mandam pra sempre. Além disso, fico preocupado em como eu vou conseguir cuidar de Shizuka... Certamente não vou poder ficar saindo do trabalho o tempo todo como faço na escola. Será que eu estou esperando por um milagre?

Não. Não pense nisso. Vai dar certo.

Vai tudo dar certo.

Nana e eu finalmente chegamos na frente da casa dela. Eu a abracei enquanto nos despedíamos.

" Minha mãe falou pra você vir nos visitar qualquer dia. Ela quer conversar sobre bastante coisa com você. "

-- Sim. Qualquer dia eu venho aqui. Chame ela pra ver a Shizuka também, qualquer hora.

" Sim. "

Ela subiu os degraus e acenou lá de cima pra mim. Eu acenei de volta e esperei ela entrar para começar o caminho de volta.

Passos.

. . .

Eu passei pela mesma casa da última vez. Eu olhei para o muro onde a garota estava. Novamente, eu não a encontrei. No entanto, algo no ar estava diferente da última vez.

Tem alguém atrás de mim?

Eu olhei pra trás e pensei ter visto um vulto se mover. Eu continuei olhando naquela direção por alguns instantes. Nada. Eu simplesmente continuei meu caminho com cautela. Felizmente, nada de ruim aconteceu e eu pude embarcar no metrô e voltar pra casa.

. . .

Hoje o dia foi bem agitado, com aquela garota nova. Yuujimura Hanabi. Tá aí um espécime que não se vê todo dia. Eu entrei em casa e tirei os sapatos. Eu queria simplesmente me jogar no sofá e descansar as pernas, mas tinha que avisar a Shizuka que eu cheguei. Eu atravessei a casa sem iluminação. O corredor era a parte mais escura, iluminado apenas pela lua cheia do lado de fora. Eu abri a porta e me deparei com o corpo de uma garota debruçado sobre o chão. A cama estava completamente desarrumada e Shizuka estava imóvel com uma expressão muito assustada.

-- Shizuka!

Eu corri até ela, e me agachei para me certificar que ela estava bem. Meu coração acelerou com aquela cena.

Desespero.

Pânico.

Acalme-se...

A culpa é dela...

Não...

A culpa é minha...

Vamos, acalme-se..!

Shizuka...

Me desculpe.

 

. . .

 

 

Chiharu - 02

Desculpe.

Episódio Três

Chiharu

 

Episódio 3

 

. . .

 

-- Você não tem pelo que se desculpar.

Ainda era de manhã quando eu liguei pra Nanami. Eu achei que deveria contar a ela sobre o acontecimento da noite passada. Eu não me sentiria bem se ficasse sem falar nada com ela, mas talvez esse tenha sido um pensamento egoísta.

" Como você pode dizer isso? Por minha culpa, a Shizuka... "

A voz dela começou a ficar chorosa. Eu apertei o fio do telefone em face da minha incapacidade de consolá-la.

-- Você não tinha como saber que ela teria um espasmo, muito menos que ia ser um tão forte. Não importa o que você tivesse feito, é algo que não poderia ser evitado.

" Mas... "

Embora eu tenha dito isso, talvez eu não acredite nas minhas próprias palavras. Eu me culpo pelo que aconteceu, afinal, eu sou o único responsável por ela. Eu me deixei levar e acabei deixando a responsabilidade em cima da Nana. Esses espasmos sempre me aterrorizam... Droga... Eu cuidei de Shizuka todos esses anos... Talvez se ela a tivesse deixado um pouco menos na ponta...

" Eu vou faltar a escola e ir aí hoje me desculpar! "

-- Não!

Minha resposta foi instantânea. Ela fez uma pausa.

" Você não confia mais em mim? "

-- Não é isso...

Eu não queria que soasse assim.

-- Você não pode faltar à escola por causa disso. Se você fizer isso eu vou apenas me sentir culpado.

Eu pude ouvir o som da voz hesitante dela do outro lado da linha.

" Por favor. "

Eu fiz uma pausa e suspirei.

-- Escute. Amanhã você pode vir aqui e se desculpar. Mas não ouse faltar nenhuma aula pra vir, entendeu?

" ... Entendi. "

Eu respirei aliviado.

-- Ótimo. Não se pressione demais, ok? Te vejo amanhã.

" Certo. Até... "

A voz dela ainda parecia abatida quando desligou o telefone. Ela realmente se sente culpada pelo que aconteceu. Eu olhei na direção do quarto de Shizuka. Tudo que eu podia ouvir era o som da televisão ligada e uma luz oscilante saindo do quarto. Meus olhos oscilaram pra baixo, com pena da minha própria irmã, e meus lábios se moveram num lamento silencioso por sentir aquilo.

. . .

Eu apenas conseguia olhar pela janela enquanto o professor dissertava sobre números e equações. Eu estava completamente desconfortável por ter que vir à escola hoje.

Pela manhã eu acordei Shizuka logo cedo e saí pra passear com ela. Eu guardo uma cadeira de rodas num quarto que uso como armazém, então posso usa-la para passear com ela e mostrar o que conheço das redondezas. Na volta pra casa, encontrei com uma pessoa teimosa de cabelos loiros que faltou à escola pra se desculpar. Ela insistiu que eu fosse para a aula enquanto ela ficava com Shizuka para se redimir. Eu planejava faltar hoje novamente, mas o olhar da foi irrecusável.

Isso e por que ela prometeu fazer o jantar.

O sinal tocou, dando início ao período de almoço. Eu olhei pro quadro cheio de escritos que eu não havia acompanhado e lamentei com antecedência pela minha prova de matemática. Eu saí da sala e caminhei calmamente pelo corredor.

Impacto.

Uma onda de força me atingiu pelas costas e quase me derrubou. Eu pude sentir algo pendurado no meu pescoço me inclinando pra trás logo em seguida. Então eu ouvi uma voz.

" Makoto-san! Makoto-san! Finalmente eu te encontrei! "

Essa voz...

Eu separei os braços em forma de colar ao redor do meu pescoço e fiz os pés dela tocarem o chão antes de me virar, só pra confirmar minha suposição.

-- Yuujimura-san?

" Por que você não veio à escola ontem? Hein, hein? "

-- Bom, algumas coisas aconteceram e...

Eu cocei a cabeça e desviei o olhar. Graças a isso eu pude ver Kaioshi e Akakyo acenando e se aproximando. Kaioshi fez a saudação.

" Yo. "

-- Yo!

Eu sorri ao vê-los. Estava feliz em não ter que responder a pergunta à Hanabi.

" Por que você não veio ontem? Essa aí ficou grudada na gente o tempo todo perguntando por você. "

Eu desviei o olhar. Fui bombardeado com a mesma pergunta novamente.

-- Ah, bom... Eu não estava me sentindo muito bem.

Eu cocei a cabeça enquanto olhava fixamente um ponto no rodapé. Mesmo assim, pude sentir o olhar penetrante de Akakyo como se ele soubesse que eu estava mentindo. Hanabi deu o que quase foi um salto pra frente e segurou minhas mãos, balançando-as freneticamente em seguida.

" Mas hoje você está se sentindo melhor não é! Yay! Vamos pro clube de dança com fantoches de novo! "

Nesse momento eu corei imediatamente. Eu não havia contado a eles que tinha participado desse clube... Na verdade eu não tinha pensado no quanto seria embaraçoso pra mim depois. Eu ousei olhar pra eles. A expressão deles não é a de quem estava surpreso com a notícia, mas de quem já sabia e apenas estava se lembrando. Nekogami pôs as mãos nos bolsos e inclinou o rosto para baixo enquanto dava risos, enquanto Osakura colocou a mão na frente da boca e bufou as bochechas tentando se segurar, sem muito sucesso. Risos altos. O resultado foi um Kaioshi segurando a barriga enquanto ria. Akakyo não conseguiu aguentar e diante da risada do amigo levou a mão à cabeça e a atirou pra trás, se virando de costas enquanto ria.

Eu olhava pra tudo enquanto cerrava os punhos de raiva. Yuujimura levou o dedo até a boca como quem não entendesse a situação.

Será que nem por um momento ela pensou que pudessem estar rindo do clube dela?

Alguns segundos depois ela se virou pra mim e me puxou de novo, forçando uma resposta. Eu apenas consegui balbuciar.

-- Ah, eu... Hum...

Eu senti algo me abraçando pelo pescoço. Foi quando notei meu rosto se aproximando do de Osakura até ficar lado a lado com o dele. Ele me puxou pra longe enquanto falava.

" Ah, desculpe! Hoje não vai dar! O Makoto já tinha combinado algo com a gente hoje à tarde, então foi mal! "

Ele fez uma saudação com um toque militar na testa. Ela tentou protestar.

" M-mas! "

Enquanto ele me puxava pelo corredor a última coisa que pude ver foi o rosto emburrado da pequena garota de cabelos negros.

. . .

Eu ouvi o sinal que dava o fim à ultima aula. Eu me levantei e rumei normalmente em direção à saída da escola. Fui surpreendido, já no exterior, com um toque no meu ombro esquerdo. Era Osakura. Nekogami ergueu a mão em cumprimento.

" Yo! Está pronto? "

-- Pronto?

Eu realmente não faço ideia do que ele está falando.

" Você combinou de sair com a gente hoje não foi? "

-- Eu combinei?

Eu tentei buscar na minha memória... Nada.

... Ah!

Ele não pode estar falando sério se estiver se referindo ao que disse à Hanabi hoje mais cedo. Não que eu não queira sair...

Não que eu esteja preocupado nem nada, nem confie na Nana, mas...

" Ah, vamos! Você nunca tem tempo pra sair com a gente. "

Eu sorri desconsertado. A verdade é que eu não sei por que esses dois perdem tanto tempo comigo, um cara que eles nem conhecem direito. Sinto como se nossa amizade fosse unilateral a maior parte do tempo. Acho que não posso recusar.

-- Bom, já que você insiste...

Eu sorri apenas uma vez, mas recebi dois sorrisos de volta.

Nós saímos pelo portão. Primeiro nós decidimos parar pra comer algo, então paramos numa barraca de Tayaki e pedimos alguns. Eu caminhei um pouco por algumas ruas que nunca tinha visto, ou simplesmente não lembrava. Tomei bastante cuidado pra não me perder. Nós paramos numa loja de games. Eu e Osakura estávamos olhando alguns lançamentos novos. Eu não tenho oportunidade pra jogar nada, então eu me admiro bastante com o quanto a qualidade dos jogos, pelo menos nas aparências deles, que melhorou muito com o passar dos anos. Nós vimos Akakyo ir até o balcão e pedir algo quase que escondido para não vermos. Eu e Kai nos olhamos e nos aproximamos sorrateiramente por trás. O vendedor entregou um pacote vermelho que devia ser de algum jogo para portáteis e pediu para Nekogami verificar. Antes de ele conseguir por numa sacola plástica a mão voadora de Kaioshi agarrou o pacote e trouxe mais pra perto para que pudéssemos ver. Kyo ergueu a mão num gesto inútil de tentar impedi-lo.

... Kerubi?

Eu desviei meu olhar do nome do jogo e me voltei para a figura da capa. Era uma bolinha azul com olhos e bochechas rosadas. Apesar de sua aparência claramente fofa ela tinha uma expressão séria no rosto. Havia também a classificação indicativa do jogo logo abaixo da imagem.

" Indicado para crianças entre 6 e 10 anos. "

Nós dois erguemos os olhos do jogo e fitamos o garoto ruivo fixamente com olhar de total e completa reprovação. Ele corou e tomou rapidamente o jogo das nossas mãos e enfiou dentro do saquinho, dando as costas para nós dois.

Por quase uma hora nós zoamos com ele por causa disso.

Depois que as coisas se acalmaram nós entramos numa loja de revistas e mangás. Eu pude rever mangás de alguns animes que eu gostava muito quando era menor, e alguns novos que já tinha ouvido falar ou visto um episódio ou dois. Descobrimos que nossos gostos eram bem parecidos. Em certo ponto eu derrubei um mangá sem querer, revelando algo que não deveria estar naquele lugar: Uma revista erótica. Como quem tem algum sensor de perversão aqueles dois se aproximaram de mim enquanto eu segurava a revista com as duas mãos.

Não me julgue. Elas se moveram sozinhas.

Não havia nenhum lacre ou algo do tipo. Eu abri a revista numa página nossos olhos brilharam diante da vista. Nossa diversão foi rapidamente cortada, no entanto, quando percebemos uma presença atrás de nós. Uma funcionária, que segurava um objeto - um bastão pra ser mais exato - particularmente assustador. Ela batia com ele na sua outra mão enquanto olhava pra nós, furiosa. Praticamente no segundo seguinte, nós três estávamos correndo em disparada para fora da loja.

Nós corremos por mais alguns minutos com medo de que ela tivesse nos seguido. Estávamos agora parados com as mãos nos joelhos, rindo de nossa própria idiotice.

Eu olhei o horário no meu velho celular. Ainda tínhamos um pouco de tempo pra fazer alguma coisa.

-- E então, pra onde vamos?

Nekogami falou primeiro.

" Bom, na verdade, eu lembrei que preciso fazer algumas compras que meu avô pediu. Podem ir na frente. Nos vemos amanhã. "

-- Ah.. Não quer ajuda?

Ele fez um sinal negativo com a mão.

" Não, não se preocupe. "

Eu e Osakura erguemos as mãos enquanto ele dava as costas e ficamos olhando até ele virar numa esquina.

-- Então, acho que devíamos ir pra casa também...

Apesar da minha sugestão Osakura parecia pensativo sobre algo.

" Na verdade... "

Eu olhei curioso.

" Tem um lugar que você ainda não deve conhecer. Você por acaso conhece a lenda do monstro que vive nessa cidade? "

Lenda do monstro? Eu vivi aqui quando era pequeno, e nunca ouvi nada do tipo... Histórias sobre monstros deviam ser mais populares entre crianças do que entre jovens não é? Talvez seja algum tipo de folclore dos últimos anos?

-- Não...

Ele sorriu de forma sádica.

" Sei... Então vamos. "

Ele me puxou pelo braço na direção oposta a que Akakyo havia ido.

-- Vamos pra onde? Ei, Osakura!

E assim eu acabei sendo arrastado por ele duas vezes no mesmo dia.

. . .

Nós dois paramos de frente para uma casa aparentemente normal. Estamos abaixados atrás de um arbusto espreitando por uma janela, nos movimentando lentamente para ver melhor pelas frestas. Ele parece conseguir a visão antes de mim e aponta

" Ali! O monstro... Que habita essa cidade! "

Eu me movimentei para a posição onde ele estava totalmente incrédulo de que poderia realmente avistar um monstro.

E a visão com a qual eu me deparei, de fato, não se parecia nada com um.

Eu me deparei com uma bela garota ruiva. Ela tinha olhos alaranjados e parecia realmente concentrada em algo. Eu não podia ver as roupas dela daquele ângulo, mas podia supor que ela estava com roupas casuais, talvez até com um pijama.

Eu olhei para Osakura com repulsa. Desse jeito estávamos simplesmente parecendo dois tarados. Ele apenas sorriu e lançou um desafio.

" Vamos entrar lá. "

-- O que!?

" Vamos entrar lá! "

Ele repetiu. Por estarmos sobrepondo o tom de voz um do outro eu fiquei com medo que tivessem nos ouvido, então dei uma espiada na janela novamente, mas a garota ainda estava concentrada no que estava fazendo, agora com a pontinha da língua pra fora da boca.

-- Você ficou maluco?

" Ah, vamos, você não está com medo não é? "

-- Medo? Claro que não, eu só...

" Bichinha. "

-- Como é?

" Frangote. "

-- Ei, eu já falei que...

" Você devia mudar seu nome pra Osoroshii Makoto! "

Medroso!?

-- Ora seu...

" Então entre. "

Ele está me deixando realmente irritado. Eu não gosto de ser desafiado. Não gosto nem um pouco. O espírito competitivo começou a borbulhar no meu sangue e então nós procuramos por uma janela destrancada para entrarmos na casa.

-- O que vamos fazer quando estivermos lá dentro?

" Vamos tirar uma foto de alguma coisa para provarmos que estivemos na casa do monstro e então vamos dar o fora. "

-- Entendi.

Nós achamos uma janela que estava destrancada. Ele me deu apoio e eu subi. Tive a decência de tirar os sapatos antes de fazer isso. Ninguém parecia ter ouvido nada. Após me certificar que estava tudo bem eu me virei para dar meu braço para apoiar Kaioshi e acabei me deparando com uma janela fechada.

Aquele rosto cínico estava sorrindo largamente enquanto suas mãos me impediam de abrir a janela, por mais que eu tentasse. Eu não podia nem mesmo bater no vidro e xinga-lo por que alguém podia me ouvir lá dentro. Em outras palavras, eu tinha que encontrar um jeito de sair dali... Acho que pela porta da frente, se não houvesse ninguém na sala, seria o jeito mais silencioso... Eu saltei de parede em parede, como um ninja, observando se não havia movimento na casa. Felizmente, a garota parecia ser a única pessoa na casa naquele momento. Enquanto eu evitasse a porta do quarto dela estaria tudo bem. Eu consegui cobrir a distância até a sala, onde não havia ninguém também.

Ao abrir a porta havia um garoto com uma sacola numa mão e uma chave na outra, apontada como se estivesse prestes a colocá-la na fechadura. Nós nos olhamos por um segundo.

-- Aaaaah!
" Aaaaah! "

Nós gritamos ao mesmo tempo. Ele quase derrubou a sacola no chão e quase caí no chão eu mesmo.

" Makoto!? "
-- Akakyo??

Meu cérebro travou e não consegui raciocinar direito por alguns segundos. Simplesmente fiquei parado como um pateta, com a boca semi aberta.

" O que você está fazendo na minha casa? "

-- Sua casa?

No momento em que disse isso eu pude ouvir um risinho vindo de uma lata de lixo atrás de Akakyo, e logo pude ver a silhueta da cabeça do maldito do Osakura. Meu braço se moveu involuntariamente sobre o ombro de Akakyo pra apontar na direção dele.

-- Ei, seu maldito!

Ele parou de rir e balbuciou algo que me pareceu bastante com um 'droga!'. Eu ia abrir caminho por Nekogami pra extasiar a minha raiva quando uma voz feminina atrás de mim me chamou a atenção.

E ela não parecia nada feliz.

" Ei, que gritaria é essa!? Quem é esse aí? "

Eu me virei pra trás. Lá estava a garota que vi há alguns minutos. Ela estava parada com as mãos na cintura. Agora podia ver melhor as roupas dela, ela estava usando um mini-short de tecido e uma regata vermelha. A expressão no seu rosto não era muito convidativa. Kyo fez uma cara de tédio.

" É meu amigo, Yuragi, deixe-o em paz. "

Aquele maldito... Me fez passar por esse sufoco...

" Ho... "

 

Ela cruzou os braços, me encarando. Pela primeira vez notei que ela tinha um palito de dente que deixava ela com uma expressão séria. Ela não poderia...

Ter colocado ele ali só pra fazer essa expressão, não é?

Ela me avaliou de cima a baixo com um olhar julgador que me deixou mais do que desconfortável. Por algum motivo seus olhos me davam medo.

" Entra aí. "

Akakyo suspirou e disse. Tirou os sapatos e passou por mim, adentrando a casa e indo até o cômodo que eu já havia averiguado ser a cozinha. Eu fui entrando logo atrás dele, sendo acompanhado pelo olhar assustador da garota. Ela desviou sua atenção de mim após algum tempo e se voltou para o lado de fora.

" Ei, verme, vai ficar aí fora? "

Kai se levantou imediatamente enquanto suas pernas estremeciam. Ele fez uma continência com uma cara assustada.

" N-não s-senhora! "

Ele correu em direção à porta enquanto ela suspirou entediada e deu as costas, sentando-se no sofá. Osakura fechou a porta e tirou os sapatos, parando do meu lado, sorrindo. Grande erro. Ele recebeu uma cotovelada no rim como sinal pra nunca mais fazer algo do tipo. Eu dei um olhar gélido pra ver se ele tinha entendido o recado. Seu sorriso cínico me mostrou que não.

Enquanto Akakyo não voltava, ficamos ali parados sem fazer contato. Eu aproveitei para dar uma olhada no ambiente. Era uma casa simples com um design claramente japonês. O piso era feito de madeira assim como a maior parte dos móveis. Havia alguns quadros históricos, principalmente enfatizando a presença de samurais. Em cima dos móveis havia algumas fotos. Nelas estavam sempre presentes Akakyo, essa garota, Yuragi, um velhinho e uma velhinha que eu imaginei serem os avós deles. Eu não conseguia imaginar outro tipo de relação entre aqueles dois se não a de irmãos, mas não podia deixar de pensar que eles poderiam talvez ser primos ou algo assim.

Yuragi ligou a TV, depois se levantou e começou a mexer em alguns cabos. Akakyo colocou as mãos nos bolsos e olhou para Kaioshi.

" Você precisa ser mais original. "

Ele desviou o olhar e corou um pouco. Eu tive que perguntar.

-- Do que você está falando?

" Ele te fez entrar aqui não foi? "

Agora foi minha vez de corar. Eu tinha esquecido da situação constrangedora em que fui pego.

-- ... Sim... Mas como assim original?

" Bom, isso foi por que eu fiz isso com ele há algum tempo. Ele entrou aqui e então eu o tranquei pelo lado de fora. Lembra? "

Ele olhou pra Kaioshi, que simplesmente se fingiu de quem não estava escutando.

" Bom, de qualquer forma, você deu sorte. Da última vez a Yuragi pegou ele e o confundiu com um assaltante ou algo do tipo... Bom... Você ainda tem os hematomas? "

" Não, mas eu ainda sinto a dor quando lembro! "

Eu pude ver que os olhos dele ficaram aquosos com a lembrança do que aconteceu. Eu achei ela realmente assustadora, mas com isso finalmente comecei a compreender o conceito de 'monstro'.

Yuragi pareceu ter terminado o que ela havia começado a fazer e então se sentou no sofá, satisfeita. Para a minha surpresa, ela olhou pra mim e disse:

" Sente-se aqui, novato. Vamos ver do que você é capaz. "

Eu não sabia direito do que se tratava até olhar a tela da televisão. Havia um jogo de combate chamado "Road Combat". O jogo já existia quando eu era pequeno, mas essa era uma versão em 3D e totalmente diferente daquela época. Eu me sentei no sofá e peguei no controle sem saber direito o que os botões faziam... Falando nisso pra que tantos botões? Eu fiquei olhando enquanto ela colocava na tela de seleção de personagens. Eu não sabia direito quem escolher então peguei qualquer um. Um cara grande e musculoso, como todos os outros. A personagem dela era uma garota loira com uma roupa colada vermelha.

Na minha cabeça ela me daria alguns segundos para aprender como se joga aquilo, mas...

Assim que a contagem regressiva acabou fui bombardeado com o som de uma combinação de botões sendo apertada tão rapidamente que eu mal conseguia ver os dedos dela. Eu apertava os botões aleatoriamente enquanto tentava salvar a vida do meu personagem, mas tudo o que eu podia fazer era vê-lo ser mandado pelos ares numa combinação de golpes infinita. Meu HP chegou ao 0 e uma animação exageradamente realista da garota atacando as partes íntimas do meu brutamontes serviu como a cereja no topo do bolo.

Eu olhei para a televisão, incrédulo do que acabara de acontecer. Eu desviei meu olhar para a jogadora ao meu lado, que simplesmente manteve a expressão convencida. Tsc. Eu não gosto de perder. Eu larguei o controle e me levantei do sofá, só para ser provocado por ela.

" O que foi? O neném já vai chorar em casa? "

Eu parei enquanto minha expressão tomava uma forma de ódio expressivo.

-- Tsc. Esse tipo de jogo é ridículo. Eu poderia vencer você em qualquer outro.

" Ho... "

Ela ergueu uma sobrancelha em resposta.

" Então por que você não escolhe um jogo? Ali, naquela gaveta. "

Ela apontou preguiçosamente com o pé direito e eu fui verificar. Tenho certeza que uma veia está saltando na minha testa agora. Akakyo e Kaioshi estavam olhando pra mim com uma expressão de compaixão, ou talvez de pena. Malditos. Eu vou mostrar pra eles! Eu escolhi dois jogos ao acaso da gaveta e coloquei o primeiro. Era um jogo de corrida chamado "Flames". Nós começamos o jogo. Meu carro era um preto com detalhes brancos enquanto o dela era um rosa-choque com pinturas azuis. O jogo começou numa corrida um contra um. Pelo senso comum eu descobri o botão de acelerar e nós começamos. O carro dela começou a sair na minha frente. Não importa o que eu tentasse, era impossível passar dela e estava difícil tentar não sair da pista. Ela me provocava de tempos em tempos parando no meio da pista para que eu pudesse alcança-la. Em certo momento eu ativei todos os meus boosts de velocidade. Eu sorri. É agora...

Eu vou passa-la!

Ela manobrou para a esquerda e meu carro deu de cara com uma rampa. Eu voei pelos ares e por cima de várias casas até dar de frente com um prédio. Os detalhes novamente me surpreenderam quando eu pude ver os funcionários do prédio correndo enquanto meu carro atravessava o vidro até sair do outro lado e cair de cabeça pra baixo no rio. A explosão, dessa vez, foi a cereja no topo do bolo.

Agora meus dois "amigos" estão rindo da minha cara, enquanto a meretriz apenas mantém seu sorriso confiante. Eu me abstive de comentários e coloquei o terceiro jogo dentro do console. "Heartstopper Tennis".

Eu escolhi um jogador de cabelo preto com uma faixa branca na cabeça, e ela uma jogadora ruiva com um rabo de cavalo. Os dois usavam roupas totalmente brancas. O jogo começou sem que eu soubesse muito bem o que fazer. Era apenas um Set então eu teria que aprender rápido. Eu sabia que ela não ia me perdoar. O primeiro game acabou sem que eu soubesse o que apertar para rebater a maldita bola. Eu tentei prestar atenção no que ela estava apertando, mas ela parecia estar movendo os dedos entre os botões justamente para me desnortear. Tsc... Depois do terceiro game eu já sabia o que os botões faziam e comecei a rebater a maioria das bolas. No fim do quarto game consegui meus primeiros 15 pontos. Eu terei que fazer uma recuperação milagrosa agora, se quiser vencer... Consegui 30 pontos no quinto game. Mais um e está acabado. Eu olhei para o canto superior esquerdo da tela. Há algum tempo havia um ícone de ataque especial brilhando abaixo do nome da personagem dela, mas ela não parecia ter usado ainda. O meu havia acabado de aparecer no meio do sexto game. Eu apertei o botão indicado e meu personagem golpeou a bola para cima, fazendo a câmera mostrar ela passando das nuvens. Eu pude ver um sorriso de canto de boca se formando no rosto da garota quando ela usou sua tacada especial. Para minha surpresa a tenista saltou até alcançar minha bola e raqueteou ela pra baixo. A bola fez uma curva e atingiu meu personagem no peito, fazendo-o voar para trás. Eu larguei o controle e simplesmente fiquei olhando sem acreditar. Alguns paramédicos começaram a bombardear o peito do meu personagem com eletricidade enquanto eu ficava lá, pasmo com aquela droga de jogo. Uma mensagem comemorativa de "Heartstopped!" apareceu.

Mas que...

Eu me levantei do sofá, sem conseguir olhar no rosto de ninguém.

" E então, já teve o suficiente? "

Eu abri a boca pra responder, mas acho que as palavras não sairiam mesmo que eu soubesse o que dizer. De qualquer forma nós ouvimos a maçaneta da porta girar e eu vi a figura de um velho entrar pela casa. Era o mesmo das fotos que eu tinha visto mais cedo. Ele olhou para o grupo de jovens ali reunido e proferiu palavras com uma voz claramente idosa.

" Ora, ora, temos visita? "

Eu me senti um pouco intruso e desconfortável estando ali sem o consentimento dele, que, ao que tudo indicava, era o dono da casa. Eu não tinha entrado lá formalmente, de qualquer forma, e a presença dele ali só serviu para aumentar minha angústia, fora o fato de que não queria ter que ficar ouvindo o monstro - sim, monstro, por que não tem como aquela ruiva demoníaca ser humana - falando coisas irritantes.

" Você chegou, Jii-chan. Eu fiz as compras que você me pediu. "

" Ah, obrigado. "

Akakyo pareceu tratar a pergunta dele como retórica. Eu recobrei a compostura.

-- Boa noite...

Eu disse, sem graça. Ele simplesmente riu e depois sorriu por detrás do bigode branco.

" Não precisamos ser tão formais, garoto. Seu nome? "

-- Alkaev Makoto.

" Alkaev, é... "

Para minha surpresa ele pronunciou o nome perfeitamente. Talvez ele já tenha morado no exterior algum tempo?

" Yo, vovô, quanto tempo! "

Osakura se aproximou do velho e lhe deu tapinhas nos ombros. Eles já pareciam se conhecer.

" Ora... Quem é você mesmo!? "

" Mas o que... Você se esqueceu de mim!? "

Todos rimos. Eu olhei para a janela e percebi o quanto era tarde. Eu não percebi que tinha passado tanto tempo! Não posso deixar a Nanami assim até tão tarde lá em casa.

-- Acho que é melhor se eu for agora, não posso chegar muito tarde.

" É, eu também vou. "

Kaioshi falou logo depois de mim. Akakyo abriu a porta pra nós e nos despedimos com batidas nas mãos. Eu senti algum tipo de projétil, um elástico, me atingir na parte de trás da cabeça. Eu olhei pra trás e vi a garota com uma expressão provocativa no rosto.

" Volte aqui qualquer dia, quando quiser apanhar de novo. Pode escolher o jogo que quiser."

Eu cerrei o punho e meu rosto assumiu uma expressão determinada.

-- Da próxima vez jogaremos pelas minhas regras, e você não vai me derrotar em nada!

" Certo, certo. "

Ela fez pouco caso do que eu tinha acabado de falar, mas eu mantive minha expressão e me virei na direção de casa. Kai fez um sinal apressado com a mão e se despediu.

" Até! Ei, Makoto, me espere! "

Primeiro, fui buscar meus sapatos no fundo da casa. Depois, nós dois seguimos juntos e comentamos sobre o que tinha acontecido. Pouco tempo depois, nos despedimos e seguimos caminhos diferentes.

. . .

Quando eu cheguei em casa imaginei que Nanami já poderia ter ido sozinha por causa do horário, mas ela estava me esperando na sala. Ela tinha colocado Shizuka sentada no sofá e estava terminando de amarrar um laço azul numa segunda trança no cabelo dela. As duas olharam na minha direção quando me viram entrar.

" Bem-vindo, Makoto. "

Eu corei um pouco. Ser recebido por duas garotas lindas e uma voz agradável quando chego em casa... Acho que posso me acostumar com isso.

-- Cheguei...

Eu tirei os sapatos e olhei na direção da qual um cheiro chamativo vinha.

-- Isso é Curry?

" Sim. Está um pouco frio, então é melhor se você esquentar um pouco antes de comer. "

-- Isso pode ficar pra depois. Acho melhor te levar logo, está bem tarde. Desculpe, foi minha culpa.

" Não tem problema. Nós nos divertimos tanto que eu nem vi o tempo passar. Não é, Shizu-chan? "

As duas sorriram uma pra outra, e eu não pude evitar sorrir também.

Eu e Nana levamos Shizuka até a cama dela e a deitamos com cuidado. Ela se certificou quatro vezes de que não tinha deixado nenhuma parte dela próxima da beirada da cama e, embora eu tenha dito que aquilo não era necessário, ela insistiu que só se acalmaria se tivesse feito isso. Nós nos despedimos começamos o caminho para a casa dela.

No caminho conversamos sobre o que fizemos no nosso dia. Contei sobre a casa do monstro como quem conta uma história de terror, mas depois de tudo revelado tomei uma bronca pela invasão domiciliar. Ela me contou sobre as coisas que conversou e fez com Shizuka, embora ela não quisesse me contar um segredo ou dois. Quando eu perguntei ela simplesmente riu e não quis falar nada, correndo de mim logo depois. Eu tive que persegui-la até a estação do metrô.

Poder estar com amigos é muito bom. Eu quase não me lembrava de como era. Alguns mais velhos, outros mais novos, alguns esquisitos e outros com quem você briga... Por esse motivo, recentemente eu tenho me sentido muito mais feliz. Espero chegar o dia em que vou poder falar abertamente com todos sobre mim, mas ainda tenho muito medo... Medo de que fiquem com pena de mim. É o que eu menos quero. Ainda bem que eu tenho ela. Felizmente, Nanami torna tudo mais fácil. Sinto que posso me apoiar nela se tudo der errado. Fico impressionado em perceber o quanto somos amigos mesmo depois de tanto tempo. Ela deve ter outras amizades na escola, afinal, é uma garota gentil, inteligente e bonita. Mesmo assim ela sacrifica o tempo dela pra ficar comigo e com a Onee-chan. Acho que é algo que não aconteceria se nossos laços não tivessem se mantido fortes desde aquela época. E também aquela promessa...

Nós chegamos antes que eu percebesse. A mãe dela estava esperando preocupada na frente da casa. Ela sorriu ao nos ver.

" Ah, Makoto-kun! Como você cresceu! E está muito bonito também! "

-- Haha, não é bem assim...

Eu corei mediante ao elogio.

-- Me desculpe. A culpa de termos chegado tão tarde hoje foi minha. Não vai acontecer de novo.

Eu me curvei diante dela num pedido de desculpas por algo pelo qual me sentia responsável. A mãe dela sorriu compreensiva e me afagou na cabeça, me fazendo corar novamente.

" Não se preocupe com isso. Tenha certeza de vir mais cedo da próxima vez para passar um tempo aqui. "

-- Ah, certo!

Eu me levantei depressa e fiz as duas rirem um pouco da minha postura tensa. Eu e Nana nos despedimos com um aceno e eu esperei que elas duas entrassem para poder rumar até minha casa.

Eu continuei o caminho de volta como sempre. Meus passos me fazem aproximar-me cada vez mais do muro em que eu vi a garota de cabelos negros e olhos vermelhos naquele dia. Mais uma vez, ela não está ali. Eu suspirei. Talvez eu devesse desistir de encontrá-la. Mas algo me intrigou. Eu olhei para o ponto onde eu pensei ter visto uma silhueta na noite passada. Eu continuei olhando fixamente para lá, como se esperasse que algo fosse surgir. Um movimento. Minhas pernas se enrijeceram e adrenalina subiu pelo meu corpo. O que eu vi sair dali foi uma figura felina de pelo negro que me olhou e grunhiu, arisca, só para correr depois. Eu me acalmei enquanto fazia uma cara de repressão quanto a minha idiotice.

-- Um gato...

Eu me virei para olhar novamente em direção à casa quando me deparei com uma alta figura masculina a cerca de um metro de mim. Meu corpo ficou estático. Ele segurava, em sua mão direita, um objeto longo, de quase um metro. Uma espada. Meu coração quis saltar pela boca. Nem um único som saiu dela para expressar minha surpresa e pânico. Tudo que pude ver foi algo rápido vindo na direção da minha cabeça.

E aí tudo o que sobrou foi a escuridão total.

. . .

 

Chiharu - 03

Escuridão.

 

 

 

Chiharu

 

Episódio 3

 

. . .

 

-- Você não tem pelo que se desculpar.

Ainda era de manhã quando eu liguei pra Nanami. Eu achei que deveria contar a ela sobre o acontecimento da noite passada. Eu não me sentiria bem se ficasse sem falar nada com ela, mas talvez esse tenha sido um pensamento egoísta.

" Como você pode dizer isso? Por minha culpa, a Shizuka... "

A voz dela começou a ficar chorosa. Eu apertei o fio do telefone em face da minha incapacidade de consolá-la.

-- Você não tinha como saber que ela teria um espasmo, muito menos que ia ser um tão forte. Não importa o que você tivesse feito, é algo que não poderia ser evitado.

" Mas... "

Embora eu tenha dito isso, talvez eu não acredite nas minhas próprias palavras. Eu me culpo pelo que aconteceu, afinal, eu sou o único responsável por ela. Eu me deixei levar e acabei deixando a responsabilidade em cima da Nana. Esses espasmos sempre me aterrorizam... Droga... Eu cuidei de Shizuka todos esses anos... Talvez se ela a tivesse deixado um pouco menos na ponta...

" Eu vou faltar a escola e ir aí hoje me desculpar! "

-- Não!

Minha resposta foi instantânea. Ela fez uma pausa.

" Você não confia mais em mim? "

-- Não é isso...

Eu não queria que soasse assim.

-- Você não pode faltar à escola por causa disso. Se você fizer isso eu vou apenas me sentir culpado.

Eu pude ouvir o som da voz hesitante dela do outro lado da linha.

" Por favor. "

Eu fiz uma pausa e suspirei.

-- Escute. Amanhã você pode vir aqui e se desculpar. Mas não ouse faltar nenhuma aula pra vir, entendeu?

" ... Entendi. "

Eu respirei aliviado.

-- Ótimo. Não se pressione demais, ok? Te vejo amanhã.

" Certo. Até... "

A voz dela ainda parecia abatida quando desligou o telefone. Ela realmente se sente culpada pelo que aconteceu. Eu olhei na direção do quarto de Shizuka. Tudo que eu podia ouvir era o som da televisão ligada e uma luz oscilante saindo do quarto. Meus olhos oscilaram pra baixo, com pena da minha própria irmã, e meus lábios se moveram num lamento silencioso por sentir aquilo.

. . .

Eu apenas conseguia olhar pela janela enquanto o professor dissertava sobre números e equações. Eu estava completamente desconfortável por ter que vir à escola hoje.

Pela manhã eu acordei Shizuka logo cedo e saí pra passear com ela. Eu guardo uma cadeira de rodas num quarto que uso como armazém, então posso usa-la para passear com ela e mostrar o que conheço das redondezas. Na volta pra casa, encontrei com uma pessoa teimosa de cabelos loiros que faltou à escola pra se desculpar. Ela insistiu que eu fosse para a aula enquanto ela ficava com Shizuka para se redimir. Eu planejava faltar hoje novamente, mas o olhar da foi irrecusável.

Isso e por que ela prometeu fazer o jantar.

O sinal tocou, dando início ao período de almoço. Eu olhei pro quadro cheio de escritos que eu não havia acompanhado e lamentei com antecedência pela minha prova de matemática. Eu saí da sala e caminhei calmamente pelo corredor.

Impacto.

Uma onda de força me atingiu pelas costas e quase me derrubou. Eu pude sentir algo pendurado no meu pescoço me inclinando pra trás logo em seguida. Então eu ouvi uma voz.

" Makoto-san! Makoto-san! Finalmente eu te encontrei! "

Essa voz...

Eu separei os braços em forma de colar ao redor do meu pescoço e fiz os pés dela tocarem o chão antes de me virar, só pra confirmar minha suposição.

-- Yuujimura-san?

" Por que você não veio à escola ontem? Hein, hein? "

-- Bom, algumas coisas aconteceram e...

Eu cocei a cabeça e desviei o olhar. Graças a isso eu pude ver Kaioshi e Akakyo acenando e se aproximando. Kaioshi fez a saudação.

" Yo. "

-- Yo!

Eu sorri ao vê-los. Estava feliz em não ter que responder a pergunta à Hanabi.

" Por que você não veio ontem? Essa aí ficou grudada na gente o tempo todo perguntando por você. "

Eu desviei o olhar. Fui bombardeado com a mesma pergunta novamente.

-- Ah, bom... Eu não estava me sentindo muito bem.

Eu cocei a cabeça enquanto olhava fixamente um ponto no rodapé. Mesmo assim, pude sentir o olhar penetrante de Akakyo como se ele soubesse que eu estava mentindo. Hanabi deu o que quase foi um salto pra frente e segurou minhas mãos, balançando-as freneticamente em seguida.

" Mas hoje você está se sentindo melhor não é! Yay! Vamos pro clube de dança com fantoches de novo! "

Nesse momento eu corei imediatamente. Eu não havia contado a eles que tinha participado desse clube... Na verdade eu não tinha pensado no quanto seria embaraçoso pra mim depois. Eu ousei olhar pra eles. A expressão deles não é a de quem estava surpreso com a notícia, mas de quem já sabia e apenas estava se lembrando. Nekogami pôs as mãos nos bolsos e inclinou o rosto para baixo enquanto dava risos, enquanto Osakura colocou a mão na frente da boca e bufou as bochechas tentando se segurar, sem muito sucesso. Risos altos. O resultado foi um Kaioshi segurando a barriga enquanto ria. Akakyo não conseguiu aguentar e diante da risada do amigo levou a mão à cabeça e a atirou pra trás, se virando de costas enquanto ria.

Eu olhava pra tudo enquanto cerrava os punhos de raiva. Yuujimura levou o dedo até a boca como quem não entendesse a situação.

Será que nem por um momento ela pensou que pudessem estar rindo do clube dela?

Alguns segundos depois ela se virou pra mim e me puxou de novo, forçando uma resposta. Eu apenas consegui balbuciar.

-- Ah, eu... Hum...

Eu senti algo me abraçando pelo pescoço. Foi quando notei meu rosto se aproximando do de Osakura até ficar lado a lado com o dele. Ele me puxou pra longe enquanto falava.

" Ah, desculpe! Hoje não vai dar! O Makoto já tinha combinado algo com a gente hoje à tarde, então foi mal! "

Ele fez uma saudação com um toque militar na testa. Ela tentou protestar.

" M-mas! "

Enquanto ele me puxava pelo corredor a última coisa que pude ver foi o rosto emburrado da pequena garota de cabelos negros.

. . .

Eu ouvi o sinal que dava o fim à ultima aula. Eu me levantei e rumei normalmente em direção à saída da escola. Fui surpreendido, já no exterior, com um toque no meu ombro esquerdo. Era Osakura. Nekogami ergueu a mão em cumprimento.

" Yo! Está pronto? "

-- Pronto?

Eu realmente não faço ideia do que ele está falando.

" Você combinou de sair com a gente hoje não foi? "

-- Eu combinei?

Eu tentei buscar na minha memória... Nada.

... Ah!

Ele não pode estar falando sério se estiver se referindo ao que disse à Hanabi hoje mais cedo. Não que eu não queira sair...

Não que eu esteja preocupado nem nada, nem confie na Nana, mas...

" Ah, vamos! Você nunca tem tempo pra sair com a gente. "

Eu sorri desconsertado. A verdade é que eu não sei por que esses dois perdem tanto tempo comigo, um cara que eles nem conhecem direito. Sinto como se nossa amizade fosse unilateral a maior parte do tempo. Acho que não posso recusar.

-- Bom, já que você insiste...

Eu sorri apenas uma vez, mas recebi dois sorrisos de volta.

Nós saímos pelo portão. Primeiro nós decidimos parar pra comer algo, então paramos numa barraca de Tayaki e pedimos alguns. Eu caminhei um pouco por algumas ruas que nunca tinha visto, ou simplesmente não lembrava. Tomei bastante cuidado pra não me perder. Nós paramos numa loja de games. Eu e Osakura estávamos olhando alguns lançamentos novos. Eu não tenho oportunidade pra jogar nada, então eu me admiro bastante com o quanto a qualidade dos jogos, pelo menos nas aparências deles, que melhorou muito com o passar dos anos. Nós vimos Akakyo ir até o balcão e pedir algo quase que escondido para não vermos. Eu e Kai nos olhamos e nos aproximamos sorrateiramente por trás. O vendedor entregou um pacote vermelho que devia ser de algum jogo para portáteis e pediu para Nekogami verificar. Antes de ele conseguir por numa sacola plástica a mão voadora de Kaioshi agarrou o pacote e trouxe mais pra perto para que pudéssemos ver. Kyo ergueu a mão num gesto inútil de tentar impedi-lo.

... Kerubi?

Eu desviei meu olhar do nome do jogo e me voltei para a figura da capa. Era uma bolinha azul com olhos e bochechas rosadas. Apesar de sua aparência claramente fofa ela tinha uma expressão séria no rosto. Havia também a classificação indicativa do jogo logo abaixo da imagem.

" Indicado para crianças entre 6 e 10 anos. "

Nós dois erguemos os olhos do jogo e fitamos o garoto ruivo fixamente com olhar de total e completa reprovação. Ele corou e tomou rapidamente o jogo das nossas mãos e enfiou dentro do saquinho, dando as costas para nós dois.

Por quase uma hora nós zoamos com ele por causa disso.

Depois que as coisas se acalmaram nós entramos numa loja de revistas e mangás. Eu pude rever mangás de alguns animes que eu gostava muito quando era menor, e alguns novos que já tinha ouvido falar ou visto um episódio ou dois. Descobrimos que nossos gostos eram bem parecidos. Em certo ponto eu derrubei um mangá sem querer, revelando algo que não deveria estar naquele lugar: Uma revista erótica. Como quem tem algum sensor de perversão aqueles dois se aproximaram de mim enquanto eu segurava a revista com as duas mãos.

Não me julgue. Elas se moveram sozinhas.

Não havia nenhum lacre ou algo do tipo. Eu abri a revista numa página nossos olhos brilharam diante da vista. Nossa diversão foi rapidamente cortada, no entanto, quando percebemos uma presença atrás de nós. Uma funcionária, que segurava um objeto - um bastão pra ser mais exato - particularmente assustador. Ela batia com ele na sua outra mão enquanto olhava pra nós, furiosa. Praticamente no segundo seguinte, nós três estávamos correndo em disparada para fora da loja.

Nós corremos por mais alguns minutos com medo de que ela tivesse nos seguido. Estávamos agora parados com as mãos nos joelhos, rindo de nossa própria idiotice.

Eu olhei o horário no meu velho celular. Ainda tínhamos um pouco de tempo pra fazer alguma coisa.

-- E então, pra onde vamos?

Nekogami falou primeiro.

" Bom, na verdade, eu lembrei que preciso fazer algumas compras que meu avô pediu. Podem ir na frente. Nos vemos amanhã. "

-- Ah.. Não quer ajuda?

Ele fez um sinal negativo com a mão.

" Não, não se preocupe. "

Eu e Osakura erguemos as mãos enquanto ele dava as costas e ficamos olhando até ele virar numa esquina.

-- Então, acho que devíamos ir pra casa também...

Apesar da minha sugestão Osakura parecia pensativo sobre algo.

" Na verdade... "

Eu olhei curioso.

" Tem um lugar que você ainda não deve conhecer. Você por acaso conhece a lenda do monstro que vive nessa cidade? "

Lenda do monstro? Eu vivi aqui quando era pequeno, e nunca ouvi nada do tipo... Histórias sobre monstros deviam ser mais populares entre crianças do que entre jovens não é? Talvez seja algum tipo de folclore dos últimos anos?

-- Não...

Ele sorriu de forma sádica.

" Sei... Então vamos. "

Ele me puxou pelo braço na direção oposta a que Akakyo havia ido.

-- Vamos pra onde? Ei, Osakura!

E assim eu acabei sendo arrastado por ele duas vezes no mesmo dia.

. . .

Nós dois paramos de frente para uma casa aparentemente normal. Estamos abaixados atrás de um arbusto espreitando por uma janela, nos movimentando lentamente para ver melhor pelas frestas. Ele parece conseguir a visão antes de mim e aponta

" Ali! O monstro... Que habita essa cidade! "

Eu me movimentei para a posição onde ele estava totalmente incrédulo de que poderia realmente avistar um monstro.

E a visão com a qual eu me deparei, de fato, não se parecia nada com um.

Eu me deparei com uma bela garota ruiva. Ela tinha olhos alaranjados e parecia realmente concentrada em algo. Eu não podia ver as roupas dela daquele ângulo, mas podia supor que ela estava com roupas casuais, talvez até com um pijama.

Eu olhei para Osakura com repulsa. Desse jeito estávamos simplesmente parecendo dois tarados. Ele apenas sorriu e lançou um desafio.

" Vamos entrar lá. "

-- O que!?

" Vamos entrar lá! "

Ele repetiu. Por estarmos sobrepondo o tom de voz um do outro eu fiquei com medo que tivessem nos ouvido, então dei uma espiada na janela novamente, mas a garota ainda estava concentrada no que estava fazendo, agora com a pontinha da língua pra fora da boca.

-- Você ficou maluco?

" Ah, vamos, você não está com medo não é? "

-- Medo? Claro que não, eu só...

" Bichinha. "

-- Como é?

" Frangote. "

-- Ei, eu já falei que...

" Você devia mudar seu nome pra Osoroshii Makoto! "

Medroso!?

-- Ora seu...

" Então entre. "

Ele está me deixando realmente irritado. Eu não gosto de ser desafiado. Não gosto nem um pouco. O espírito competitivo começou a borbulhar no meu sangue e então nós procuramos por uma janela destrancada para entrarmos na casa.

-- O que vamos fazer quando estivermos lá dentro?

" Vamos tirar uma foto de alguma coisa para provarmos que estivemos na casa do monstro e então vamos dar o fora. "

-- Entendi.

Nós achamos uma janela que estava destrancada. Ele me deu apoio e eu subi. Tive a decência de tirar os sapatos antes de fazer isso. Ninguém parecia ter ouvido nada. Após me certificar que estava tudo bem eu me virei para dar meu braço para apoiar Kaioshi e acabei me deparando com uma janela fechada.

Aquele rosto cínico estava sorrindo largamente enquanto suas mãos me impediam de abrir a janela, por mais que eu tentasse. Eu não podia nem mesmo bater no vidro e xinga-lo por que alguém podia me ouvir lá dentro. Em outras palavras, eu tinha que encontrar um jeito de sair dali... Acho que pela porta da frente, se não houvesse ninguém na sala, seria o jeito mais silencioso... Eu saltei de parede em parede, como um ninja, observando se não havia movimento na casa. Felizmente, a garota parecia ser a única pessoa na casa naquele momento. Enquanto eu evitasse a porta do quarto dela estaria tudo bem. Eu consegui cobrir a distância até a sala, onde não havia ninguém também.

Ao abrir a porta havia um garoto com uma sacola numa mão e uma chave na outra, apontada como se estivesse prestes a colocá-la na fechadura. Nós nos olhamos por um segundo.

-- Aaaaah!
" Aaaaah! "

Nós gritamos ao mesmo tempo. Ele quase derrubou a sacola no chão e quase caí no chão eu mesmo.

" Makoto!? "
-- Akakyo??

Meu cérebro travou e não consegui raciocinar direito por alguns segundos. Simplesmente fiquei parado como um pateta, com a boca semi aberta.

" O que você está fazendo na minha casa? "

-- Sua casa?

No momento em que disse isso eu pude ouvir um risinho vindo de uma lata de lixo atrás de Akakyo, e logo pude ver a silhueta da cabeça do maldito do Osakura. Meu braço se moveu involuntariamente sobre o ombro de Akakyo pra apontar na direção dele.

-- Ei, seu maldito!

Ele parou de rir e balbuciou algo que me pareceu bastante com um 'droga!'. Eu ia abrir caminho por Nekogami pra extasiar a minha raiva quando uma voz feminina atrás de mim me chamou a atenção.

E ela não parecia nada feliz.

" Ei, que gritaria é essa!? Quem é esse aí? "

Eu me virei pra trás. Lá estava a garota que vi há alguns minutos. Ela estava parada com as mãos na cintura. Agora podia ver melhor as roupas dela, ela estava usando um mini-short de tecido e uma regata vermelha. A expressão no seu rosto não era muito convidativa. Kyo fez uma cara de tédio.

" É meu amigo, Yuragi, deixe-o em paz. "

Aquele maldito... Me fez passar por esse sufoco...

" Ho... "

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Tag der Veröffentlichung: 09.01.2014

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