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Capítulo 01

 

PROJETO ALDEN

 

DesbravadoresBETA

 

 

 

PARTE I

CONEXÃO

 

 

[Alden BETA não se responsabiliza por pessoas que, por ventura, possam passar do tempo aconselhável de jogo. Lembre-se: há uma vida fora do mundo digital.]

[Esta é uma versão BETA, ou seja, bug’s e glitch’s de sistema podem ocorrer. Pedimos que comuniquem à empresa quaisquer inconvenientes durante seu tempo de jogo, para que possíveis infortúnios possam ser corrigidos numa futura atualização.]

Boa diversão!

 

 

 

< 1 >

 

O relógio tocou alto, mas eu ainda queria dormir.

Me levantei e bati no despertador. Ainda eram 6h30 da manhã, um horário em que todo o universo deveria estar dormindo, mas lá estava eu, trocando de roupa e arrumando o material escolar. Um dia como outro qualquer, e aquela rotina já estava prestes a me matar.

—Bom dia, filho.

Minha mãe estava sempre de bom humor, e eu me perguntava como isso era possível naquele horário.

—Bom dia, mãe.

Meus cabelos ainda estavam bagunçados, mas eu tomei meu café da manhã assim mesmo. Comi rápido, escovei os dentes e saí de casa atrasado, e tudo aquilo fazia parte da rotina.

O ônibus escolar passava sempre um minuto antes de eu chegar no ponto de parada, o que me fazia correr feito maratonista antes das sete horas de cada manhã.

—Sempre atrasado, Damon.

—Sempre, senhor Maxwell.

Maxwell era o cobrador, um velho simpático e meio intrometido. Aquele era nosso diálogo de bom dia há, no mínimo, dois anos e meio, e talvez fosse assim até que eu completasse o ensino médio, no ano seguinte.

Passei pela roleta e me sentei ao lado de Anise Noreen, uma garota de franja escura e roupas coloridas, sempre sorridente. Ela assistia ao telejornal na tela portátil que ficava acoplada ao banco da frente.

Quando eu me sentei, ela fechou a cara e engrossou a voz.

—Damon Theodore, você está atrasado novamente!

—Muito engraçado, Anise, mas essa fala não é sua.

—Ah, droga, não funciona nem se eu ficar séria! Parece que só a Emily consegue a sua atenção mesmo!

—Ei, do que você tá falando?!

Emily Torrance era outra de minhas companheiras de escola. Diferente de Anise, ela era séria e bem fechada. Eu sempre me atrasava, e ela sempre me repreendia da mesma forma, na frente de seu irmão, Harold, um pirralho de treze anos de idade que adorava tirar sarro de mim.

—Você sabe, todo mundo tem falado disso.

—Disso o quê?

Ela apontou para a televisão portátil, e só então eu percebi que o telejornal debatia sobre a única coisa em todo o mundo que me deixava empolgado ultimamente: Alden.

Alden era um projeto ousado, um jogo eletrônico que prometia levar o jogador ao limite da realidade aumentada, utilizando para isso um aparelho conectado ao sistema neurológico, como uma tiara, e um conector na forma de um visor escuro, responsável por ampliar o contato da pessoa física com o mundo virtual. De acordo com eles, dentro daquele mundo, você seria capaz de tocar objetos e construções, sentir cheiros e gostos, mover seu personagem livremente e muito mais. Só de pensar nas possibilidades eu já ficava bastante ansioso.

 

 

 

 

 

 

 

 

—Você se lembra que dia é hoje?

Eu olhei em meu relógio.

—13 de fevereiro de 2028?

E só então me lembrei.

—Mas é claro, como eu pude me esquecer! Hoje é o lançamento da versão Beta!

—Exatamente, espertinho. Mas da prova de álgebra ninguém lembra, não é?

—Prova de álgebra?!

—Mentira! O Keane disse que o pai dele conseguiria o jogo, se lembra?

Keane Lauren era outro dos nossos amigos, e também o garoto mais inteligente da sala. O pai dele era um programador famoso, cuja principal função em sua empresa era auxiliar no desenvolvimento dos softwares que mantém os jogos eletrônicos funcionando. Ele trabalhou na produção dos sistemas utilizados em Alden, e Keane nos disse que, quando a Beta fosse lançada, ele conseguiria um aparelho daquele para cada um de nós, sem custo algum.

—Será que ele vai conseguir?

—Ele é quase um milionário, vai dar um jeito de comprar nove! Afinal de contas, o que são seis mil dólares, não é?

—Quase um carro, Anise.

—Eu ainda prefiro o jogo!

O ônibus parou na frente da escola particular de Birmingham, e voltou vazio quando todos os alunos desceram. Anise me contava sobre as novidades que tinha visto na internet sobre Alden, como o sistema de classes e o combate baseado na movimentação controlada por instintos cerebrais, coisas que eu já sabia muito antes de ela cogitar uma pesquisa.

Passamos pelo portão principal, quando alguém nos chamou.

—Ei, vocês dois. Espero que não tenham se esquecido que dia é hoje.

Eu reconheceria aquela voz em qualquer lugar.

—Não, Vincent, não tem como esquecer. Eu passei seis meses atualizando a página de lançamento do jogo, não deixaria passar essa oportunidade de jeito nenhum.

Ele sorriu, e então nos cumprimentou.

Vincent Windsor era o típico valentão das salas de aula, com o porte físico maior do que os demais alunos e uma aparência capaz de intimidar os mais estudiosos, mas era, no fundo, uma boa pessoa. Exceto quando o assunto era liderar. Ele queria ser o primeiro em tudo, em tudo mesmo, e muita gente acabava ficando um pouco receosa de andar com ele. Talvez tenha sido por isso que ele acabou fazendo amizade conosco.

—Eu estou ansioso, cara! Não vejo a hora de sair por aí correndo, batendo em monstros fracotes com a minha espada!

—Você viu o Keane?

—Ele ainda não chegou. Nem a gótica.

—A Emily.


 

 

 

 

Gótica era o apelido carinhoso oferecido a Emily devido às roupas escuras e pesadas que ela sempre vestia.

—Isso, ela mesma. Parece que o irmão dela se atrasou, mas o pai deles já cuidou disso. Vamos lá, o povo tá esperando a gente!

Vincent estava animado mesmo, pois disparou com passos rápidos demais para que acompanhássemos.

Ainda faltavam alguns minutos para o início das aulas, mas a escola já se mostrava cheia de alunos, o que não era de todo estranho. Birmingham era a segunda maior cidade da Inglaterra, atrás somente da capital, Londres, e isso justificava todo aquele excesso de gente nas salas de aula. Conforme o mundo evoluiu, o quantitativo populacional cresceu mais e mais, e agora parecia que nós morreríamos por falta de ar, tamanha a quantidade de pessoas caminhando no mesmo lugar.

Chegamos ao pátio e encontramos com facilidade os demais integrantes do nosso grupo de estudo. Eram bons amigos, todos eles, apesar de existirem algumas intrigas, como sempre existem nas relações de adolescentes de dezesseis anos.

—E aí, gente.

—Cadê aquele cretino do Keane?

Earl Bromberg sempre tinha muito amor em suas palavras. Ela era, possivelmente, a garota mais bonita da nossa sala, mas seu jeito masculino de ser afastava quaisquer pretendentes. Seu corpo era chamativo, bem como seus olhos claros, um contraste com o ruivo cobreado de seus cachos. Ela sempre tinha em mãos uma bolsa de pelúcia que faria qualquer pessoa acreditar que ela era a garota mais dócil e gentil do universo.

 

 

 

O que era uma tremenda mentira, claro.

—Eu não o vi.

—É claro que não o viu! Ninguém nunca o vê! Eu sabia que ele estava mentindo, aquele maldito nerd! Duvido que ele consiga os aparelhos para a gente.

—Calma, Earl, ele já deve estar chegando. Nunca vi tanta ansiedade assim. Seu cabelo tá até pegando fogo!

Com todo aquele jeitão de pacifista e comentários infames, repletos de ironia, esse era Dilan Irving, um dos maiores bananas da escola, incapaz de desafiar um garoto do fundamental para uma discussão, mas sempre cheio de bravatas. Dilan era um cara que eu reconheceria de longe: baixo, gordinho, bochechas rosadas, aquela expressão abobada de costume, e a pasta de desenhos, claro, a qual ele nunca se permitia esquecer.

Não que ele fosse um grande desenhista, mas enfim, era um hobby que ele insistia em aperfeiçoar. Ou tentar, tanto faz.

—O que você disse?

—Nada não!

—É bom mesmo!

Ele colocou a pasta na frente de seu rosto, como um escudo. Eu tinha minhas dúvidas se mesmo um escudo de verdade poderia afrontar a ira de Earl.

—Anotem o que eu vou dizer: se aquele maldito riquinho estiver mentindo, eu juro que vou arrancar cada fio daquele cabelo lambido!

Eu não pude conter o riso.

 

 

—Relaxa, Earl, o Keane só está atrasado! Aliás, hoje é o dia dos atrasos, não é?

Anise bateu em meu braço.

—Falou aí o cara que tá sempre na hora!

—Eu chego a tempo, no final.

—Tô sabendo. Mas pode assumir, você só tá preocupado com o atraso da Emily, não é? Conta pra gente, Damon. Rolou algum beijo entre vocês dois?

Eu recuei, apavorado com aquela ideia.

—Qual é a de vocês? Não, não tem nada acontecendo entre mim e a Emily! Vocês são doidos de pensar nisso, ela é tão séria, e eu sou tão... tão...

—Patético?

Senti meu corpo todo gelar.

Emily chegara sem avisar, junto de seu irmão, Harold. Eles eram bem diferentes, na verdade. Ninguém que não os conhecesse poderia deduzir que eram irmãos. Emily se vestia em roupas escuras, tecidos repletos de bordados peculiares, pesados demais para o dia-a-dia, e isso fazia dela a estranha da escola. Ela sempre tinha uma bolsa enorme nas mãos, da qual, eu acreditava fielmente, poderia tirar qualquer coisa que fosse necessária.

Harold, por sua vez, era um risonho nato, se divertindo muito na presença de Anise e Dilan. Da irmã, herdara apenas o cabelo louro, pois sua expressão era alegre e suas roupas coloridas, um contraste ao rosto fechado e aos trajes sombrios de Emily.

 

—Isso, patético! Não, não era isso o que eu ia falar, era... Ah, cara.

—Bom dia para você também, Damon.

Ela se sentou ao lado dos demais, cumprimentando-os.

—Fala aí, patético.

Harold deu dois tapinhas em meus ombros, sentando-se ao lado da irmã. Emily jogou sua bolsa sobre a mesa, e ela desabou com um estrondo, assustando Paige, que até então escutava seus fones de ouvido sem se preocupar com os nossos assuntos inoportunos.

—Dá pra ser só um pouco menos explosiva?

—Claro que sim. E você, pode tirar esses fones por um minutinho sequer?

Paige Hazel era uma garota que, num descuido, qualquer um deixaria passar em branco. Ela era bonita, mas era comum, e não fazia nada para se afastar de seus indícios mundanos. Ficava ali, penteando seu cabelo curto, com os olhos fechados sob os óculos e uma música alta tocando nos fones.

Eu mesmo, até aquele momento, nem havia percebido que ela estava lá.

—Por que? O mundo tem alguma sabedoria para me oferecer?

—Não, e nem essas suas bandas de rock estrondoso. Por um acaso você viu o Keane?

Ela fez que não com a cabeça, e Emily bufou. Harold sacudiu os pés no banco.

—Justo hoje? Eu quero ver o jogo, estou ansioso demais!

 

—Todos nós estamos!

—É, patético, mas eu estou ainda mais! Eu andei pesquisando sobre as classes dos personagens. Já planejei o que vou criar.

—E o que vai ser?

—Surpresa! Mas vocês vão gostar, eu tenho certeza. E o seu, já pensou em algo?

Na realidade, eu já havia pensado em muitas possibilidades. Eu sempre gostei de guerreiros, em todos os jogos pelos quais passei. A espada resolvia as coisas com maior facilidade. Dessa vez, em Alden, eu queria inovar. Já que eu representaria o personagem, teria de ser algo interessante, uma coisa que me surpreendesse, que surpreendesse todos os meus amigos.

Dessa maneira, respondi a ele com toda a sinceridade do mundo.

—Não. Não pensei em nada.

O sinal tocou, alertando-nos que as aulas já estavam prestes a começar.

—Acho que ele não vem mesmo.

Vincent socou o ar.

—Maldito Keane! Ele vai ver só.

Ao longe, alguém corria desajeitado, uma imensa mochila sacudindo em suas costas. Estreitei os olhos para ver melhor.

—Não é ele ali?

—Onde?

—Ali, trotando igual um cavalo bêbado.

 

—É ele sim! Keane! Keane, vem cá!

Keane era um garoto de cabelo dividido ao meio e óculos muito grandes, sempre carregando livros e uma mochila cheia de coisas desnecessárias. Naquele dia, sua mochila parecia ainda maior, e ele corria com dificuldade, o peso oscilando seus passos.

—Olá, pessoal.

Ele arfava.

Jogou a mochila sobre a mesa, permitindo-se respirar.

—E aí, Keane. Conseguiu as coisas?

Havia um sorriso desagradável em seu rosto.

—Foi por isso que eu me atrasei.

Keane abriu o zíper de sua mochila, entregando-nos nove aparelhos da versão Beta de Alden, todos em suas devidas caixas, com um manual de funcionamento básico colado à parte exterior.

Meus olhos —mas não só os meus, obviamente —brilharam conforme eu revirava aquele caixote em mãos, lendo e relendo as frases de marketing, admirando as screenshots do jogo, imaginando as coisas improváveis que aquele programa de realidade aumentada me permitiria fazer.

 

Capítulo 02

< 2 >

 

A aula demorou muito mais do que o convencional para passar. A todo o momento eu me pegava olhando para um dos meus amigos, e todos eles estavam igualmente ansiosos, sempre abrindo as mochilas, examinando o aparelho enquanto o professor dava as costas à sala para escrever sua matéria no quadro negro, sussurrando algum comentário sobre a funcionalidade e as características postadas na parte de trás da embalagem etc.

Vincent me jogou um papel dobrado, que bateu no meu braço e caiu no chão. Desamassando-o, pude ler:

Você vai começar a jogar hoje?

Escrevi assim que chegar em casa no papel e o devolvi.

Ele rabiscou outra vez e me atirou novamente.

A versão Beta ainda não é online, pelo que entendi, mas funciona em rede local. O que acha de jogarmos juntos?

Pensei um pouco. Seria interessante para o começo do jogo ter uma companhia. Ajudaria na criação do personagem e em diversos outros fatores.

Tá bem. Depois que almoçar, aparece em casa. A gente cria o personagem e começa as primeiras quests.

Ele acenou com os dedos e voltou sua atenção para o pacote dentro de sua mochila, fingindo vez ou outra estar escutando a explicação do professor de história.

Durante o intervalo, enquanto eu comia um salgado de calabresa, Keane se aproximou. Ele tinha um lanche natural em mãos.

—Continua comendo essas coisas que você vai ver onde vai parar.

Keane era o típico naturalista, vegetariano e disposto a fazer somente as coisas verdes da vida. Não bebia refrigerante, não comia carne vermelha, desprezava a maioria dos alimentos provenientes de animais por acreditar que aquele era um desrespeito para com a natureza.

—Pois é. Um dia todo mundo morre.

—Belo pensamento.

Ele se sentou ao meu lado.

—E aí, o que achou do jogo?

—Ainda nem joguei!

—Mas e a embalagem, o que você acha?

—Parece ser incrível. É uma pena que essa versão funcione apenas em rede local, por enquanto.

—Cara, acredite em mim, é incrível mesmo! Eu tive que testar ontem, assim que chegou. Vocês não perdem por esperar. Vão ficar maravilhados com os gráficos e a realidade dos cenários, é simplesmente fantástico!

—Tenho certeza que sim. Vincent vai jogar comigo hoje. Achei melhor do que começar sozinho.

Keane deu de ombros.

—Vai ajudar nas primeiras missões. Depois que todo mundo se ambientar, podemos marcar de jogarmos juntos. A Beta comporta até vinte jogadores na mesma rede local sem problema nenhum.

—Legal isso.

—Legal demais!

Paige surgiu de súbito, terminando seu suco e colocando a embalagem vazia sobre a mesa, onde se sentou.

—Nós estamos em nove, não é?

Eu estranhei a sua pergunta. Foi Keane quem respondeu, e cada vez mais eu percebia uma admiração peculiar em seus olhos quando ele dirigia palavras a ela.

—Sim, sim, em nove. Por que a pergunta?

—São nove classes, pelo que diz o manual. Seria legal se cada um de nós usasse uma delas, sem repetições.

—Faz sentido. Eu criei um Howling Cavalier, se isso ajuda.

—Você criou? Como assim? Quer dizer que você nem esperou a gente se conectar para começar a jogar?

—Não, não, não foi isso o que eu quis dizer, eu só —

—Muito legal da sua parte, Keane, seu egoísta! Mas se serve de alguma coisa, pretendo criar uma Nature Sovereign. Depois nós acertamos essas coisas por e-mail. Vou avisar os outros.

E ela se retirou com passos rápidos, deixando Keane se desculpando com o nada.

—Fala sério, Ken!

—O que?

—Você fica bobinho quando vê ela. Não pretende fazer nada com isso?

Ele pareceu assustado com a minha afirmação.

—Ei, qual é, você tá imaginando coisas! Eu e a Paige, nós só somos amigos, isso, e sempre vai ser assim.

—Tô sabendo.

—É sério!

Percebi, ao longe, que Vincent e Earl estavam juntos, como sempre discutindo sobre alguma coisa inútil. Eram quase um casal, sempre brigando por coisas fúteis e, após algum tempo, chegando a uma solução que deveria ser óbvia desde o início.

Apontei-os para Keane.

—Tipo aqueles dois?

—Ah, não, nunca seria assim! Eles formam um casal perfeito, cara, só não descobriram isso ainda. Os dois adoram brigas, até assistem os mesmos programas de luta livre! Se eles não se casarem um dia, o mundo vai entrar em colapso.

Eu achei graça, tentando escutar um pouco da nova discussão de Vince e Amora, o apelido que oferecemos para Earl, e que, por sinal, ela nunca apreciou.

—Eu vou ser um Wild Affront, Earl, você sabe disso!

—Nem ferrando, valentão, eu já tinha escolhido essa classe bem antes! Faça logo seu Dawn Paladin, que é quase a mesma coisa, e eu vou ficar com o mestre da pancadaria!

—É a sua cara, mesmo, uma brutamontes esquentada demais para se controlar!

—Como ousa?!

—Tá ficando vermelha, Amora, acho melhor eu parar de te provocar. Pode ficar com o Wild Affront, então. Eu vou fazer o meu guerreiro e mostrar pra você que essa classe é muito melhor.

—Repita isso quando eu esmagar o seu rosto no chão do mundo virtual, babaca!

—Babaca?!

—É, babaca!

Às vezes eu achava que a discussão dos dois passava dos limites, mas eles sempre terminavam sorrindo juntos, como se nada tivesse acontecido.

Keane disse:

—Bom, isso elimina mais duas classes das possíveis escolhas. O que você pretende fazer, Damon?

Eu pensei um pouco. Os guerreiros já tinham sido escolhidos, restando apenas o Dazed Fist, uma classe de combate corpo-a-corpo, que se utiliza de armas pequenas ou mesmo das próprias mãos. Mas eu não queria algo assim. Queria variar um pouco, ser algo que nunca antes escolhi em jogo algum.

Decidi que seria um feiticeiro.

—Farei um Constellation Lord.

—Sério? Pensei que você ficaria bravo pelos guerreiros!

—Eu quero inovar dessa vez. O que acha dessa classe?

—Ela é boa. Todas são, na verdade. O jogo é bem equilibrado. Vou te contar um segredo: somente três classes no jogo tem uma criatura aliada, e elas são a minha, a de Paige e a sua. A diferença é que os Constellation Lord não podem escolher a criatura que terão. Ela surge de maneira aleatória, num nível entre o 1 e o 5.

—Que legal! É tipo um familiar, não é?

—Exatamente isso.

Comecei a gostar dos magos, mesmo antes de conhecê-los.

—Por que não conta isso para a Paige?

Keane corou, surpreso.

—Mas eu —

—Vai lá, cara, ela vai gostar de saber que poderá ter um animalzinho. Tenho certeza que ela vai escolher um gato. Você sabe que ela adora gatos, não é?

Ele fez que sim, tímido.

—Eu vou contar pra ela, então. Qualquer coisa é só me chamar.

—Tá bem. Mas ei, Ken. Que animal você escolheu?

Ele sorriu, orgulhoso demais em suas palavras.

—Um lobo das neves. É o Ramsey.

—Esse é nome dele?

—Isso.

Teria que pensar num nome para o meu personagem e para o meu familiar, e isso era trabalhoso demais para mim.

Keane se afastou, deixando-me sozinho na mesa, e eu então terminei meu salgado. Dali, pude observar a sua conversa com Paige, aparentemente um desastre, bem como a discussão de Vincent e Earl, que agora já saía de Alden para entrar nos ringues das competições de vale-tudo. Também pude ver Dilan e Anise juntos, e sabia que aquelas reuniões terminavam com metade da escola sendo criticada pelas costas. Aqueles dois tinham muito em comum, mas eram brincalhões demais para um namoro.

Quando pensei em me levantar, Emily e Harold se sentaram.

—E aí, patético!

—Como você está, Harold?

—Melhor agora que já escolhi a minha profissão! Eu serei um Nocturnal Hiss, conhece?

Minha memória me dizia que era uma classe próxima dos ladrões oportunistas de outros jogos.

—Claro. Tem tudo a ver com você Aquela coisa de ser furtivo e sorrateiro, combina perfeitamente.

Acho que nunca antes usei tanta ironia nas mesmas palavras.

—E você, Emy, já fez a sua escolha?

—Sim. Eu serei a Dazed Fist.

—Sério? Nunca pensei que a veria jogar com uma classe combatente.

—Acha que eu não sou durona o suficiente?

—Pelo contrário! Quer dizer, bom, eu não sei. Pensei que você escolheria a Silence Symphonia.

—Anise já a escolheu. Além do mais, eu não sirvo para ficar ajudando os outros enquanto vocês ficam com toda a diversão. Sabe como é, classes de buff geralmente são mais fracas.

Parando para pensar, uma classe que utilizava a música para potencializar as ações do grupo encaixava muito melhor com a alegria de Anise do que com a seriedade de Emily, mas eu nunca diria isso a ela, claro.

—O Ken disse que você seria um Constellation Lord. Isso sim é estranho!

—Pois é, eu resolvi inovar dessa vez. Vamos ver o que vai ser, não é?

Ela sorriu, aquele sorriso veloz e raro, que desapareceu, como sempre desaparecia, em menos de um segundo.

—Vocês podem escolher o que quiserem, mas nunca serão páreo para Reagan, o maior Nocturnal Hiss do mundo!

—Ele já tem até nome?

—Sim, eu já criei, pra não perder tempo depois. Vocês ainda não têm?

Fiz que não, e então comecei a pensar no nome que poderia dar ao meu feiticeiro.

Aquela conversa toda estava me deixando ainda mais ansioso para testar Alden Beta. Logo o sinal tocaria, nós voltaríamos para as últimas aulas e, quando elas terminassem, eu estaria caminhando para casa, ouvindo as baboseiras costumeiras de Vincent, e então entraria em outro mundo, um mundo que, finalmente, me deixaria livre da rotina. Faria meu Constellation Lord, mataria monstros ao lado de Vince e seu Dawn Paladin, subiria alguns níveis, encontraria itens e tesouros.

Enquanto pensava em tudo aquilo, um nome me veio à mente: Darin. Achei legal, mas era mundano demais, sem impacto algum. Resolvi guardá-lo para o meu familiar, quando ele surgisse. Esforcei-me um pouco mais, mas nenhum outro nome me veio à mente após aquele.

O sinal tocou, e nós voltamos para a sala de aula em corpo, mas os pensamentos de todos estavam muito longe dali.
 
 

< 2 >

 

A aula demorou muito mais do que o convencional para passar. A todo o momento eu me pegava olhando para um dos meus amigos, e todos eles estavam igualmente ansiosos, sempre abrindo as mochilas, examinando o aparelho enquanto o professor dava as costas à sala para escrever sua matéria no quadro negro, sussurrando algum comentário sobre a funcionalidade e as características postadas na parte de trás da embalagem etc.

Vincent me jogou um papel dobrado, que bateu no meu braço e caiu no chão. Desamassando-o, pude ler:

Você vai começar a jogar hoje?

Escrevi assim que chegar em casa no papel e o devolvi.

Ele rabiscou outra vez e me atirou novamente.

A versão Beta ainda não é online, pelo que entendi, mas funciona em rede local. O que acha de jogarmos juntos?

Pensei um pouco. Seria interessante para o começo do jogo ter uma companhia. Ajudaria na criação do personagem e em diversos outros fatores.

Tá bem. Depois que almoçar, aparece em casa. A gente cria o personagem e começa as primeiras quests.

Ele acenou com os dedos e voltou sua atenção para o pacote dentro de sua mochila, fingindo vez ou outra estar escutando a explicação do professor de história.

Durante o intervalo, enquanto eu comia um salgado de calabresa, Keane se aproximou. Ele tinha um lanche natural em mãos.

—Continua comendo essas coisas que você vai ver onde vai parar.

Keane era o típico naturalista, vegetariano e disposto a fazer somente as coisas verdes da vida. Não bebia refrigerante, não comia carne vermelha, desprezava a maioria dos alimentos provenientes de animais por acreditar que aquele era um desrespeito para com a natureza.

—Pois é. Um dia todo mundo morre.

—Belo pensamento.

Ele se sentou ao meu lado.

—E aí, o que achou do jogo?

—Ainda nem joguei!

—Mas e a embalagem, o que você acha?

—Parece ser incrível. É uma pena que essa versão funcione apenas em rede local, por enquanto.

—Cara, acredite em mim, é incrível mesmo! Eu tive que testar ontem, assim que chegou. Vocês não perdem por esperar. Vão ficar maravilhados com os gráficos e a realidade dos cenários, é simplesmente fantástico!

—Tenho certeza que sim. Vincent vai jogar comigo hoje. Achei melhor do que começar sozinho.

Keane deu de ombros.

—Vai ajudar nas primeiras missões. Depois que todo mundo se ambientar, podemos marcar de jogarmos juntos. A Beta comporta até vinte jogadores na mesma rede local sem problema nenhum.

—Legal isso.

—Legal demais!

Paige surgiu de súbito, terminando seu suco e colocando a embalagem vazia sobre a mesa, onde se sentou.

—Nós estamos em nove, não é?

Eu estranhei a sua pergunta. Foi Keane quem respondeu, e cada vez mais eu percebia uma admiração peculiar em seus olhos quando ele dirigia palavras a ela.

—Sim, sim, em nove. Por que a pergunta?

—São nove classes, pelo que diz o manual. Seria legal se cada um de nós usasse uma delas, sem repetições.

—Faz sentido. Eu criei um Howling Cavalier, se isso ajuda.

—Você criou? Como assim? Quer dizer que você nem esperou a gente se conectar para começar a jogar?

—Não, não, não foi isso o que eu quis dizer, eu só —

—Muito legal da sua parte, Keane, seu egoísta! Mas se serve de alguma coisa, pretendo criar uma Nature Sovereign. Depois nós acertamos essas coisas por e-mail. Vou avisar os outros.

E ela se retirou com passos rápidos, deixando Keane se desculpando com o nada.

—Fala sério, Ken!

—O que?

—Você fica bobinho quando vê ela. Não pretende fazer nada com isso?

Ele pareceu assustado com a minha afirmação.

—Ei, qual é, você tá imaginando coisas! Eu e a Paige, nós só somos amigos, isso, e sempre vai ser assim.

—Tô sabendo.

—É sério!

Percebi, ao longe, que Vincent e Earl estavam juntos, como sempre discutindo sobre alguma coisa inútil. Eram quase um casal, sempre brigando por coisas fúteis e, após algum tempo, chegando a uma solução que deveria ser óbvia desde o início.

Apontei-os para Keane.

—Tipo aqueles dois?

—Ah, não, nunca seria assim! Eles formam um casal perfeito, cara, só não descobriram isso ainda. Os dois adoram brigas, até assistem os mesmos programas de luta livre! Se eles não se casarem um dia, o mundo vai entrar em colapso.

Eu achei graça, tentando escutar um pouco da nova discussão de Vince e Amora, o apelido que oferecemos para Earl, e que, por sinal, ela nunca apreciou.

—Eu vou ser um Wild Affront, Earl, você sabe disso!

—Nem ferrando, valentão, eu já tinha escolhido essa classe bem antes! Faça logo seu Dawn Paladin, que é quase a mesma coisa, e eu vou ficar com o mestre da pancadaria!

—É a sua cara, mesmo, uma brutamontes esquentada demais para se controlar!

—Como ousa?!

—Tá ficando vermelha, Amora, acho melhor eu parar de te provocar. Pode ficar com o Wild Affront, então. Eu vou fazer o meu guerreiro e mostrar pra você que essa classe é muito melhor.

—Repita isso quando eu esmagar o seu rosto no chão do mundo virtual, babaca!

—Babaca?!

—É, babaca!

Às vezes eu achava que a discussão dos dois passava dos limites, mas eles sempre terminavam sorrindo juntos, como se nada tivesse acontecido.

Keane disse:

—Bom, isso elimina mais duas classes das possíveis escolhas. O que você pretende fazer, Damon?

Eu pensei um pouco. Os guerreiros já tinham sido escolhidos, restando apenas o Dazed Fist, uma classe de combate corpo-a-corpo, que se utiliza de armas pequenas ou mesmo das próprias mãos. Mas eu não queria algo assim. Queria variar um pouco, ser algo que nunca antes escolhi em jogo algum.

Decidi que seria um feiticeiro.

—Farei um Constellation Lord.

—Sério? Pensei que você ficaria bravo pelos guerreiros!

—Eu quero inovar dessa vez. O que acha dessa classe?

—Ela é boa. Todas são, na verdade. O jogo é bem equilibrado. Vou te contar um segredo: somente três classes no jogo tem uma criatura aliada, e elas são a minha, a de Paige e a sua. A diferença é que os Constellation Lord não podem escolher a criatura que terão. Ela surge de maneira aleatória, num nível entre o 1 e o 5.

—Que legal! É tipo um familiar, não é?

—Exatamente isso.

Comecei a gostar dos magos, mesmo antes de conhecê-los.

—Por que não conta isso para a Paige?

Keane corou, surpreso.

—Mas eu —

—Vai lá, cara, ela vai gostar de saber que poderá ter um animalzinho. Tenho certeza que ela vai escolher um gato. Você sabe que ela adora gatos, não é?

Ele fez que sim, tímido.

—Eu vou contar pra ela, então. Qualquer coisa é só me chamar.

—Tá bem. Mas ei, Ken. Que animal você escolheu?

Ele sorriu, orgulhoso demais em suas palavras.

—Um lobo das neves. É o Ramsey.

—Esse é nome dele?

—Isso.

Teria que pensar num nome para o meu personagem e para o meu familiar, e isso era trabalhoso demais para mim.

Keane se afastou, deixando-me sozinho na mesa, e eu então terminei meu salgado. Dali, pude observar a sua conversa com Paige, aparentemente um desastre, bem como a discussão de Vincent e Earl, que agora já saía de Alden para entrar nos ringues das competições de vale-tudo. Também pude ver Dilan e Anise juntos, e sabia que aquelas reuniões terminavam com metade da escola sendo criticada pelas costas. Aqueles dois tinham muito em comum, mas eram brincalhões demais para um namoro.

Quando pensei em me levantar, Emily e Harold se sentaram.

—E aí, patético!

—Como você está, Harold?

—Melhor agora que já escolhi a minha profissão! Eu serei um Nocturnal Hiss, conhece?

Minha memória me dizia que era uma classe próxima dos ladrões oportunistas de outros jogos.

—Claro. Tem tudo a ver com você Aquela coisa de ser furtivo e sorrateiro, combina perfeitamente.

Acho que nunca antes usei tanta ironia nas mesmas palavras.

—E você, Emy, já fez a sua escolha?

—Sim. Eu serei a Dazed Fist.

—Sério? Nunca pensei que a veria jogar com uma classe combatente.

—Acha que eu não sou durona o suficiente?

—Pelo contrário! Quer dizer, bom, eu não sei. Pensei que você escolheria a Silence Symphonia.

—Anise já a escolheu. Além do mais, eu não sirvo para ficar ajudando os outros enquanto vocês ficam com toda a diversão. Sabe como é, classes de buff geralmente são mais fracas.

Parando para pensar, uma classe que utilizava a música para potencializar as ações do grupo encaixava muito melhor com a alegria de Anise do que com a seriedade de Emily, mas eu nunca diria isso a ela, claro.

—O Ken disse que você seria um Constellation Lord. Isso sim é estranho!

—Pois é, eu resolvi inovar dessa vez. Vamos ver o que vai ser, não é?

Ela sorriu, aquele sorriso veloz e raro, que desapareceu, como sempre desaparecia, em menos de um segundo.

—Vocês podem escolher o que quiserem, mas nunca serão páreo para Reagan, o maior Nocturnal Hiss do mundo!

—Ele já tem até nome?

—Sim, eu já criei, pra não perder tempo depois. Vocês ainda não têm?

Fiz que não, e então comecei a pensar no nome que poderia dar ao meu feiticeiro.

Aquela conversa toda estava me deixando ainda mais ansioso para testar Alden Beta. Logo o sinal tocaria, nós voltaríamos para as últimas aulas e, quando elas terminassem, eu estaria caminhando para casa, ouvindo as baboseiras costumeiras de Vincent, e então entraria em outro mundo, um mundo que, finalmente, me deixaria livre da rotina. Faria meu Constellation Lord, mataria monstros ao lado de Vince e seu Dawn Paladin, subiria alguns níveis, encontraria itens e tesouros.

Enquanto pensava em tudo aquilo, um nome me veio à mente: Darin. Achei legal, mas era mundano demais, sem impacto algum. Resolvi guardá-lo para o meu familiar, quando ele surgisse. Esforcei-me um pouco mais, mas nenhum outro nome me veio à mente após aquele.

O sinal tocou, e nós voltamos para a sala de aula em corpo, mas os pensamentos de todos estavam muito longe dali.
 
 

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Tag der Veröffentlichung: 07.01.2014

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