Não eram simples pesadelos.
Sempre que adormecia, ela podia ver o futuro. E como consequência, todos os seus passos, suas escolhas, seus desejos, suas perdas, acabaram a arrastando para esse lugar, que por consequência a levava ao seu próprio fim.
Ou seria apenas o começo?
Nem mesmo um deus pode viver para sempre.
Essa frase resumia tudo que essa garota sentia nesse exato momento. Cada uma dessas palavras refletiam exatamente o mundo que ela estava observando. Um mundo impossível, que antigamente fora tão belo, mais hoje sua maior parte é reduzida a um enorme mar sem vida, enquanto a outra é um infinito deserto.
Ainda assim, esse é um planeta cheio de surpresas.
Nesse momento caem pequenos flocos de neve num lugar onde nunca mais deveria nevar. De certo modo o branco que redecorava a cor das poucas plantas vivas parecia errado, nesse momento.
O sol que antes nos aquecia no final também nos abandonou.
Não haviam mais lágrimas. Elas pararam de cair a muito tempo.
A garota olhou para o céu mas não conseguiu enxergar nenhuma estrela. Ela não ficou surpresa por não ver uma luz no céu escuro. Afinal o universo estava chegando ao seu fim, e logo, a última estrela, o sol, também terá seu final, levando consigo esse planeta.
Apagando a esperança de tudo que ainda vive.
Ainda assim ela não estava com medo. A garota sabe que para haver um começo é necessário um fim. É necessário o fim dessa vida para que possa haver outra.
Então no fim nem mesmo um deus pode viver para sempre. Suas memórias podem ser apagadas, mas elas ficarão guardadas no fundo do seu coração, para sempre.
Isso é tudo que essa garota é. Isso é tudo que esse mundo magnifico é....
...Nada mais que memórias escondidas no fundo do coração do universo, que nunca serão completamente esquecidas.
Ainda é madrugada, mas o horizonte já começa a brilhar num clarão avermelhado que se funde ao tom escuro do céu. Formando uma cor única, nunca vista antes.
Esse foi o começo da contagem para a expansão do sol. O apocalipse. O fim da raça humana, do mundo, de tudo...
All of my memories keep you near
In silence moments imagine you be here
All of my memories keep you ne
Your silent whispers, silent tears
Memories / Memórias
Within Temptation
Rebellion Anthem 01
Ghost Travelers
Viajantes Fantasma
- CAPÍTULO -
01
Enquanto essa borboleta de assas negra voa, Em direção ao rastro de luz no fim desse labirinto, Retornando ao mundo de caos e dor, Que apesar de todos os defeitos, Ela ainda pode chamar de lar.
O ar quente dava a impressão que o planeta estava imerso em chamas.
A maior parte da água potável da terra desapareceu completamente, deixando o mundo em colapso. Metade do planeta era agora um completo deserto que aos poucos exterminava todas as formas de vida que ainda insistiam em sobreviver.
Em meio as imensas dunas de areia fervente uma pessoa solitária caminha lentamente, até que em um certo momento suas pernas falharam e ela desabou na areia. Seus longos cabelos castanhos se misturaram à terra que feria seu corpo por baixo dos trapos que vestia. Boa parte da pele da garota já apresentavam queimaduras de segundo grau. As bolhas de sangue mostravam a gravidade de seus ferimentos.
A garota mordeu os lábios tentando conter a dor que sentia.
Por mais que esse lugar parecesse real, algo estava fora dos eixos.
Nada disso estava certo.
Ela lembrava de ter deitado em sua cama, e logo após adormecer acordou nesse lugar. Isso era para ser apenas um pesadelo, não? Então por que sua pele estava ardendo? Por que ela sentia sede? Por que ela estava morrendo?
Ela poderia morrer em seu próprio sonho...?
Sons de passos.
Uma sombra cobriu o rosto da garota forçando-a a olhar para cima. A primeira coisa que ela reparou foi o urso de pelúcia de olhos vermelhos nos braços de uma pessoa misteriosa. A segunda foram seus longos cabelos vermelhos. Seus pés estavam descalços, ainda assim a areia escaldante não parecia incomoda-la.
A pequena menina recém chegada deu um sorriso entretido. Ela vestia um vestido marrom surrado. Seu rosto estava sujo de poeira e suor, mais ela não demonstrava estar cansada ou incomodada com o calor.
Após alguns segundos ela estendeu sua mão livre para a garota caída.
“Bem vinda de volta.”
A voz da garota de cabelos vermelhos era doce e calma, indicando uma pessoa frágil e inocente apesar daquele olhar feroz e sádico.
No momento em que suas mãos iriam se tocar tudo desapareceu como areia soprada pelo vento. A paisagem, o clima, até mesmo o céu desapareceu e começaram a ser substituídos por um cenário completamente diferente.
Esse era o início de um novo sonho.
Em sua cama, a garota de cabelos castanhos se remexia e gemia tentando afastar as imagens que invadiam sua mente. Seu quarto era distante do quarto de seus pais, então não importava o quanto ela fizesse barulho, ninguém aparecia para acordá-la.
Na sua mente centenas de outras imagens se misturavam de um modo que acabavam se tornando apenas borrões. Poucas ficavam nítidas o suficiente para ela identificar.
O vermelho pôr do sol. As águas de um rio correndo ladeira abaixo até desaparecer de vista. O corpo de uma garota no fundo de um rio. Seus olhos pulsantes, sua última gota de ar.
Ela não sabia dizer quem poderia ser essa garota. O rosto dela aparecia sempre embaçado e misturado com outras imagens, atrapalhando sua identificação.
“AAAAh!”
A garota de cabelos castanhos sentou-se assustada em sua cama, com a respiração ofegante. Ela tocou seu próprio rosto desesperadamente tentando limpar seu suor e se convencer de que tudo foi apenas um pesadelo. Mas era difícil, afinal foi tudo tão real, tão... Doloroso.
Ela olhou para a janela de seu quarto. Ainda estava escuro do lado de fora e o relógio ao lado de sua cama marcava 02h28min A.M.
A garota se deitou novamente e deu um suspiro baixo já sabendo que não voltaria a dormir facilmente. Ainda assim ela fechou os olhos rezando para adormecer mais uma vez.
– 30 de Janeiro de 1998 -
Emily Noah
Por toda a minha vida eu sempre estive a procura de um lugar para chamar de lar. E não sei por quanto tempo continuarei a procurar. Através dessa janela está uma cidade que ainda não conheço. A sétima para a qual eu me mudo. Minha sétima nova vida.
Eu nunca entendi direito o motivo para a minha família ficar se mudando com tanta frequência. E sempre que faço essa pergunta para a minha mãe, recebo a mesma resposta. ‘É por causa do trabalho do seu pai’.
Nixel, meu pai, trabalha em uma grande empresa multinacional que possui várias filiais por todo o Japão. E ele é o responsável por supervisionar cada uma delas. Ele passa meses, às vezes até anos trabalhando em uma única filial antes de migrar para outra. Então minha mãe e eu acabamos sendo arrastadas com ele nessa dura rotina.
Por causa disso eu nunca tive grandes amigos. Sempre após uma mudança, acabo perdendo contato com as poucas pessoas que conhecia. Então é certo dizer que sempre que eu chego a uma nova cidade acabo ganhando uma nova vida, tendo que recomeçar tudo do zero.
Mas a pior parte de tudo isso é, sem dúvidas, enfrentar uma nova escola. E para piorar ainda mais comecei a estudar no fim do ano letivo, o que torna impossível para mim me enturmar. Não que eu me importe realmente com tudo isso. Nem com arrumar amigos, ou com o dever de casa. Para mim a única coisa importante nesse momento é meu canto no final da sala e a companhia do meu caderno de desenhos.
Mas será que está tudo bem viver uma vida em tons de cinza?
A sala de aula hoje está bastante barulhenta. Vários alunos bagunçam aproveitando a ausência da professora. Uns arremessam bolinhas de papel. Tem aqueles que rabiscam as paredes com caneta hidrográfica, outros apenas conversam alto. São poucos aqueles que realmente se preocupam com o dever que a professora deixou no quadro antes de ser chamada às pressas pelo diretor, deixando a sala sem ninguém para supervisionar.
Estou debruçada sobre meu caderno de desenhos, esboçando uma paisagem que vi na televisão mais cedo. Um lago com várias árvores em sua margem, até que algo acertou meu rosto. Uma bolinha de papel?
Me virei para o lado. Três alunos estão sentados em cima de algumas mesas, rindo enquanto me encaram.
“Acordou, esquisita?”
‘Esquisita’. Meu mais novo apelido.
Se não estou enganada o nome do aluno que falou comigo é Akio‘alguma coisa’. O tipo de pessoa que deixa os professores com dor de cabeça. Além disso, Akio é conhecido por ter um pequeno grupo de delinquentes na escola.
Voltei meu rosto para meu caderno de desenhos. Estou disposta a ignorar todas essas pessoas que me importunam e falam mal de mim pelas costas. Que por sinal não são poucos... Que seja. Eu não me importo com o que eles pensem de mim.
Mas é claro que eles não iriam parar de me atormentar assim tão facilmente...
Algo acertou meu rosto novamente. Um objeto muito mais pesado. Uma borracha, que caiu quicando pelo chão da sala.
Dessa vez eles conseguiram me deixar irritada. Essa com certeza foram as piores duas semanas que já tive em uma nova escola. Talvez seja por que essa é a escola mais desorganizada que já vi. Não tem mais como eu ficar calada enquanto aqueles delinquentes riem da minha cara. Sempre por causa das mesmas brincadeiras sem graça!
Fechei meu caderno com um baque e arrastei minha cadeira para poder me levantar. Em seguida peguei a borracha caída no chão.
Nesse momento um urro generalizado ecoou pela sala de aula. Só após isso me dei conta que todos olham para mim. Até mesmo aqueles que estavam se concentrando nos estudos.
Eles estão esperando que eu comece uma festa? Humpf. Que seja.
Ignorei a todos e caminhei em direção aos três garotos que continuam rindo sem parar.
— Eu queria saber qual de vocês jogou isso em mim? —
Dei um sorriso forçado. O que fez eles gargalharem ainda mais.
— Quem é o dono da borracha!? —
Perguntei mais alto, minha irritação já bastante visível na minha voz.
“Fui eu! Então, vai fazer o quê?!”
Akio desceu da mesa com um sorriso debochado no rosto.
— Nada. Só queria devolver ela para você. —
Toda a sala chiou novamente. Agora num tom de desânimo. Eles queriam mesmo que eu iniciasse uma festa.
Os três garotos na minha frente riram em sincronia.
“Pode ficar com você. É um presente para se lembrar de mim.”
Seu sorriso me enoja. Controlei a vontade de dar um tapa no rosto dele e apertei a borracha na minha mão direita.
— Pode ter certeza que vou retribuir a gentileza. —
Forcei outro sorriso.
Nesse momento a professora entrou na sala e todos os alunos que estavam de pé começaram a retornar as suas carteiras com suspiros e olhares de desânimo. Eu também voltei para o meu lugar.
A professora foi para a frente do quadro negro. Seu rosto parece cansado, o que reforça ainda mais minha opinião de que essa é a pior profissão que existe. Eu não aguentaria conviver com pessoas do tipo do Akio todos os dias da semana. E para aumentar ainda mais minha convicção, mesmo com a professora dentro da sala as conversas paralelas não se cessaram.
Então, diante disso, a professora inutilmente voltou para o assunto que discutia antes de sair da sala.
Acabo não prestando muita atenção na aula e fico olhando pela janela ao meu lado. Uma outra turma está fazendo educação física no espaço aberto em frente à escola. Minha sala de aula fica no segundo andar, o que me dá uma visão privilegiada de toda a área do colégio e uma parte da cidade.
Estou observando algumas garotas que fazem corrida de revezamento quando um garoto próximo a uma árvore me chama a atenção.
Ele não está usando o uniforme da escola e sim uma camisa preta de mangas cumpridas e uma calça jeans escura. Nos pés uma bota cinza que vai até um pouco abaixo do joelho. Seu cabelo curto também é completamente preto. Sua pele é tão branca que, mesmo de longe, dá a impressão de ser quase transparente. Por causa da sombra das árvores não posso ver seu rosto ou sua expressão.
Mais é inegável que ele está olhando para... Mim.
Virei meu rosto para o quadro negro.
Por que ele estava olhando nessa direção? Tenho quase certeza de que aquele garoto estava me encarando.
Olhei novamente pela janela. Ele não está mais lá.
Percebo agora que minhas mãos tremem levemente. Suspirei fundo para me acalmar.
Será que eu apenas imaginei isso? Não! Tenho certeza que aconteceu de verdade. Mas para confirmar olhei para fora novamente. Ele havia mesmo sumido.
Isso foi realmente esquisito.
Na minha frente a professora tenta falar mais alto que os alunos. E claro, em vão.
Desviei minha atenção para Akio. Ele está sentado com seu corpo inclinado levemente para trás, fazendo com que apenas os dois pés de trás da cadeira continuem apoiadas no chão. Ele está duas cadeiras a minha frente... Uma fileira para a direita...
Abri a minha mão. Ainda estou segurando a borracha que ele arremessou em mim mais cedo.
Bom... Eu havia prometido que iria devolver a gentileza.
E os outros alunos também estão esperando que eu comece a festa.
Levantei um pouco meu braço e com toda a minha força arremessei a borracha.
Ela voou rapidamente e acertou a nuca do Akio, pegando-o de surpresa. Como esperava, ele acabou perdendo o equilíbrio e caiu de costas no chão, derrubando a mesa do aluno que estava sentado atrás, espalhando livros e objetos por todos os lados.
Toda a sala se virou na direção dele e assim uma enxurrada de gargalhadas tomou conta da classe. Somente a professora encarava Akio sem entender o que havia acontecido.
Numa reação instantânea, Akio se levantou ainda atordoado com seu rosto corando automaticamente.
Sorri triunfante e levantei da cadeira.
— Acho que estamos quites agora. Não? —
Tarde demais percebi que não devia ter jogado lenha na fogueira. Me amaldiçoei mentalmente por ter uma boca tão grande.
E como esperado, Akio berrou e partiu para cima de mim furioso enquanto gritava palavrões.
“DESGRAÇADA! POR QUE VOCÊ FEZ ISSO?! EU VOU ACABAR COM A SUA RAÇA!”
Em cinco passos rápidos ele me alcançou e segurou o colarinho do meu uniforme com sua mão esquerda. Sua força acabou me levantando, de modo que apenas as pontas dos meus pés tocam o chão.
Ah droga! Por que eu sempre acabo me metendo em situações como essa!? Eu posso não ser boa em conseguir amigos, mas acho que isso me faz muito boa em conseguir inimigos.
Tento manter a calma enquanto encaro o rosto dele procurando não me desesperar.
Akio levantou sua mão, ameaçando um soco. Ele está tremendo. Seus olhos piscam quase que freneticamente. Essa atitude calou completamente a sala de aula pela primeira vez em todo o dia, enquanto minha professora continua paralisada sem saber como agir.
Pelo jeito não tem como eu escapar. Com certeza vou chegar em casa com o rosto roxo e inchado.
Já que não tenho mais nada a perder...
— Você não vai me bater. —
Um sorriso maléfico tomou meu rosto.
— Você não tem coragem. É um covarde. —
Fiquei feliz com o quanto a minha voz soou fria e calma.
“Maldita! Você vai ver quem não tem coragem!”
A mão direita dele foi levemente para trás.
É agora!
Fechei meus olhos esperando pela dor...
...E desabei no chão.
Não por causa do soco. Eu cai por que a mão que me segurava me soltou.
Olhei para a frente. Outro aluno está parado no lugar onde estava Akio.
Seu rosto possui uma feição preguiçosa, como o de alguém que acabara de acordar. Olhei para o lado. Akio está caído a alguns passos de mim, inconsciente.
Voltei meus olhos novamente para o garoto que me salvara. Seus cabelos castanho escuro está bagunçado. Suas roupas amassadas. Seus olhos azuis me encaram com um certo ar de divertimento. Seu rosto possui traços diferentes. Ele deve ser mestiço, parte americano ou talvez britânico.
A professora despertou de sua paralisia e saiu correndo pela porta da sala. Provavelmente está indo buscar o diretor. Assim que ela deu o primeiro passo para fora da sala, uma gritaria empolgada tomou conta da classe. Todos os alunos pulavam e comemoravam como se esse tivesse sido o evento do ano.
O garoto de olhos azuis me estendeu a mão direita, oferecendo ajuda para me levantar. Eu hesitei antes de segura-la.
“Você é maluca?!”
Foi a primeira coisa que ele disse.
— Eu... Não pedi a sua ajuda... —
“É claro que não! Por que estava ocupada demais rezando!”
Ele berrou. Quem ele pensa que é?!
Apesar disso sua feição continua calma, como o de uma pessoa que acabou de acordar. Ah! Deve ter sido isso que aconteceu. Eu o tinha acordado, e por isso ele estava berrando.
“Ah não! Não!”
O garoto se virou de costas para mim, como se tivesse se lembrado de algo importante.
“Dessa vez estou realmente perdido! Além de levar uma suspensão vou apanhar na saída!”
Ele se virou novamente para mim.
“E tudo isso é culpa sua!”
Ai!
— Quem você pensa que é para me passar um sermão?! Para começar ninguém pediu para você se intrometer! E outra, eu nem mesmo te conheço! —
Tentei gritar no mesmo nível que ele, mas não cheguei nem perto disso.
“Meu nome é Eric. Então, Agora que me apresentei, posso passar todo o sermão que eu quiser!”
Ele deu uma risada breve.
— Está achando essa situação engraçada?! Você é maluco! —
“Oh sim! E você não parece perder para mim!”
Esse garoto, Eric, estendeu sua mão direita novamente na minha direção.
— O que você quer?! —
Ele sacudiu a cabeça como se eu tivesse feito uma pergunta idiota.
“Ora, vamos embora. Ou você quer ficar para fazer um passeio até a diretoria com seu amiguinho ali?”
Eric apontou para Akio que ainda permanece desacordado.
Nesse momento não consegui conter um sorriso. Voltei rapidamente para a minha mesa e guardei todos os meus materiais dentro da minha mochila de ombro. Quando virei meu rosto Eric já estava parado na porta sem carregar nada nas mãos. Ele deve ser o típico aluno que não vem para a escola estudar, e sim por que é obrigado pelos pais.
Praticamente corro por entre a multidão de alunos que ainda conversam e riem sobre o que acabou de acontecer. Outros tentam acordar Akio.
Mas o que mais me incomodou foram os olhares direcionados para mim e Eric. Aposto que coisas parecidas com ‘eles estão fugindo juntos’ estão passando pelas cabeças deles.
Bom, não posso discordar disso, afinal.
Saímos da sala.
Eric anda despreocupadamente a alguns passos na minha frente. Ele passa a impressão de que faz isso todos os dias. Já eu não consigo disfarçar meu pânico. Não quero ficar mais encrencada do que já estou.
Nós entramos no corredor principal do segundo andar. Está vazio. Provavelmente por ainda ser horário de aula, o que torna as consequências para quem for pego ainda mais severa.
— Vamos ser pegos. —
Sussurrei.
— E vão acabar nos expulsando. —
“Ah, sim. Se você continuar andando nessa velocidade. E não vamos ser expulsos. Não matamos ninguém... Ainda.”
Eric virou o rosto para mim e deu um sorriso tranquilo. Ele realmente não está nervoso com tudo isso?
Quando decidi acreditar nele, barulho de passos ecoaram pelo corredor, junto com duas vozes diferentes.
Meu coração pulou no meu peito aumentando ao limite meu pânico. Eric continua andando tranquilamente. Será que ele não ouviu que tem pessoas se aproximando?!
No momento em que ia alerta-lo, Eric virou para a direita do corredor e abriu a primeira porta que apareceu na sua frente. Por sorte ela estava destrancada.
“Primeiro as damas.”
Ele ficou ao lado da porta e a fechou assim que entrei, o que deixou o local completamente escuro.
Como não podia enxergar nada acabei batendo as costas em alguma coisa. Em seguida vários objetos começaram a cair por cima de nós dois. Eric soltou um ‘ai’ no momento em que alguma coisa pesada caiu em cima de nossas cabeças, o que me fez perder o equilíbrio e cair para a frente.
Esbarrei no corpo do Eric e nós dois desabamos no chão.
“Ai... Ai... Você não é mesmo nenhum pouco sutil! Se estivéssemos fugindo da polícia com certeza seriamos pegos!”
Eu pude sentir ele movendo seu braço contra uma parede.
“Deve ter algum interruptor por aqui...”
Com um clique tudo ficou claro novamente.
Nós estamos em um pequeno depósito de limpeza. Eu havia derrubado uma prateleira que continha vários produtos diferentes, que agora estão espalhados pelo chão.
Minhas mãos estão apoiadas no peito do Eric, nossos rostos a poucos centímetros um do outro. Ele me observa com a mesma feição preguiçosa, e claramente se esforçando para não rir. Posso sentir que meu rosto está queimando de vergonha. Também posso sentir o coração dele batendo rapidamente, contrariando sua expressão tranquila. Ah! Tenho que me levantar rápido!
Clap. Clap.
Passos soaram do outro lado da porta me fazendo paralisar de medo.
“De onde veio esse barulho?”
Uma voz masculina.
Olhei para Eric esperando que ele tivesse pensado em algum modo de nós dois sairmos dessa encrenca, mas ele apenas colocou um dedo em frente da boca me pedindo para fazer silêncio. E para tornar a situação ainda pior, um grande sorriso descontraído tomou seu rosto, me fazendo corar ainda mais.
Ele está se divertindo com a situação, com o meu desconforto. Ou, mais provavelmente, com os dois.
“Esquece isso! Vamos logo!”
Agora uma voz feminina. A voz da minha professora... Então o homem dever ser o diretor! Ah droga!
“É melhor eu ver se alguma coisa caiu.”
O diretor falou novamente fazendo meu coração disparar, tão forte que é possível o ouvir batendo.
“Os meus alunos estão se matando e você preocupado com produtos de limpeza!”
Por favor... Vão embora!
“Certo. Vamos logo então.”
Sons de passos tiveram início novamente e aos poucos diminuíram conforme os dois se distanciavam.
Soltei o ar que eu estava segurando desde o momento em que eles apareceram.
“Precisamos fazer isso mais vezes...”
Eric sussurrou logo após o barulho de passos desaparecer completamente. E isso me fez lembrar... Que eu ainda estou por cima dele!
Me levantei o mais rápido que pude. Não havia como eu ficar mais vermelha do que já estava.
— Com certeza não! —
Berrei indo em direção a porta. Eric me seguiu com aquele sorriso pretencioso enquanto eu quase corria em direção a saída.
- CAPÍTULO -
02
O vento frio não o incomodava. Ou eleapenas fingia não sentir.
Fios de seus cabelos preto caiam em frente aos seus olhos por causa do vento forte que assombrava o terraço da escola. Não foi difícil chegar a esse lugar sem ser notado. Ao encontrar a porta para o terraço trancada ele simplesmente a abriu com um chute sem se importar com os danos ao patrimônio público.
“Esse dia já se repetiu quantas vezes...?”
Ele abaixou sua cabeça.
“Eu entendo que sou o único que pode acabar com esse ciclo. Mais por quê... Tem de ser tão difícil?!”
O garoto socou a parede ao seu lado com toda sua força enquanto uma feição determinada e fria tomava seu rosto.
Ele olhou para o céu como se estivesse se preparando para rezar, ou simplesmente falar com Deus.
“Já que estou sozinho nesse mundo eu farei o que quiser. Nem que para isso eu deva deixar de 'sentir'.”
Sua mão esquerda alcançou o bolso de sua calça e tirou de lá um telefone celular.
“O que você faria se pudesse mudar seu passado?”
Um sorriso frio se formou enquanto ele ainda olhava para o céu. O sorriso de alguém que não tem mais nada a perder.
As dezenas de árvores alinhadas em frente ao colégio com certeza é o maior destaque desse lugar. Agora está completamente vazio, mas durante o horário de almoço fica lotado de alunos, que procuram as sombras das árvores para almoçarem, como num gigantesco piquenique.
Eu já posso enxergar o portão de saída por detrás das árvores, mais parei quando notei que Eric não está mais me seguindo. Ele está a vários metros de distância, caminhando em outra direção.
— Para onde você vai? —
Minha pergunta ecoou pelo ambiente.
Eric se virou e colocou as mãos dentro dos bolsos de sua calça.
“Bom, seria um desastre eu chegar em casa a essa hora, então vou ficar enrolando por aí.”
Agora que ele mencionou... Ainda falta cerca de duas horas para o fim das aulas, e assim como ele não posso chegar em casa tão cedo. Isso seria uma confissão de que não frequentei todas as aulas, e não tenho nenhum lugar para onde possa ir.
Acho que as coisas não podem ficar mais complicadas do que já estão.
Comecei a seguir Eric que me observa completamente entretido.
“Tem certeza disso? Há pouco tempo atrás você queria ficar bem longe de mim.”
É claro que ele jogaria isso na minha cara...
— Vamos tentar não tornar isso um hábito. —
“Eu diria que já é um hábito. Parece que nos conhecemos desde crianças.”
Com uma risada Eric voltou a caminhar.
O que ele quis dizer com isso? Por algum motivo estranho também venho tendo essa sensação desde que ele me salvou na sala de aula.
Tarde demais percebi que também estou com um sorriso estampado no rosto.
Chegamos a uma área aberta na parte de trás do colégio que me lembra muito um parque público, mas sem os bancos e as lojinhas. Apenas a grama verde e várias árvores de porte médio a poucos metros de distância uma das outras. Esse é um ótimo lugar para alguém que gosta de tranquilidade. Calmo, longe de qualquer um que possa incomodar.
Não que estar sozinha com esse garoto num lugar deserto seja algo bom... Pensando melhor, o que eu estou fazendo sozinha com ele em um lugar desses?
Eric se aproximou da maior árvore e se deitou em baixo de sua sombra. Pouco tempo depois fechou os olhos.
Já eu fiquei parada o observando com inveja nítida no meu olhar. Eu queria ser igual a ele... Sempre calmo sem se preocupar com nada, não temer ninguém. Mas ao mesmo tempo não ser arrogante ou hipócrita.
Olhei ao meu redor. Eu não posso ficar parada aqui para sempre. Preciso encontrar algo para fazer até a hora de voltar para casa. Hum...
Caminhei em direção a uma árvore a poucos metros do Eric e a escalei, me apoiando nos galhos até encontrar um local bom o bastante para que não corresse o risco de cair.
Se passaram alguns minutos. Eric está respirando profundamente e eu estou suspirando de tanto tédio. Esperar o tempo passar é realmente algo cansativo.
Peguei meu caderno de desenhos e uma lapiseira de dentro da minha mochila e comecei a desenhar. As árvores enfileiradas quase que perfeitamente. O céu com poucas nuvens. Também acabei escrevendo alguns pensamentos, que adoraria chamar de poemas. Por mais que eu deseje, essas baboseiras que escrevo nunca parecem boas o suficiente.
Depois de muito tempo eu já havia rabiscado várias páginas, e agora estou fazendo uma caricatura do Eric dormindo. Tomando cuidado com os pequenos detalhes, como o nariz de palhaço, a língua de lagartixa e uma barba se esparramando pelo chão a sua volta. Tenho que concordar que ele ficou mais bonito na minha caricatura.
Mais deixando isso de lado, como ele pode ser tão despreocupado? Acho que eu teria me livrado de muitas encrencas se fosse calma assim como ele.
Como se percebesse que eu o estava encarando, Eric abriu seus olhos e se voltou para mim.
“Sabe, você devia pedir permissão antes de desenhar os outros.”
O sorriso que havia desaparecido enquanto ele dormia voltou com força total. Ele se sentou e apoiou suas costas no tronco da árvore.
— Isso é o bom de desenhar. Você não precisa da autorização de ninguém. Posso desenhar o que quiser da forma que eu quiser. —
Como adicionar uma língua gigante e uma barba por exemplo.
Comecei a guardar meus matérias dentro da minha bolsa.
“Você ainda não me falou seu nome.”
Hã?
— Estudo na sua sala faz duas semanas e ainda não sabe meu nome? —
“Bom. Tirando ‘esquisita’ eu nunca ouvi seu nome verdadeiro.”
Eu me lembro de ter me apresentado para a classe no meu primeiro dia de aula. Mas pensando bem Eric não parece o tipo de pessoa que presta atenção nesse tipo de coisa. Provavelmente ele estava dormindo no dia em que me apresentei.
— Meu nome é ‘ninguém’. —
Dei um sorriso.
“Devia ter imaginado que alguém maluca o suficiente para pedir que um cara lhe acerte com um soco teria um nome com o mesmo grau de maluquice.”
— Não sou maluca! —
Fiz uma expressão séria o que acabou fazendo ele rir.
Mas no segundo seguinte esse sorriso desapareceu de seu rosto imediatamente.
Eric virou seu rosto e jogou seu corpo para o lado bruscamente, desviando de alguma coisa que passou a centímetros do seu pescoço e bateu violentamente contra o chão.
Era uma pedra. Do tamanho de um punho cerrado.
“Não desça daí por nada entendeu?”
Eric sussurrou o suficiente para somente eu ouvir e se levantou lentamente.
Antes que pudesse perguntar o que estava acontecendo um grupo de pessoas se aproximou. São alunos. Um, dois, sete pessoas, todos homens. Três deles eu reconheço como alunos da minha classe. E claro, Akio está no centro deles rindo como um idiota.
Eric colocou as mãos nos bolsos e ficou de frente para eles enquanto suspirava.
“Vou tentar não me envolver com malucas masoquistas a partir de agora.”
Eric sorriu e piscou na minha direção. Ele está falando comigo, aquele idiota.
Voltei minha atenção para o grupo recém chegado. De todos os sete apenas um segura algo nas mãos. Uma katana¹ de madeira que ele balança agilmente para exibir.
- 1 [Katana] Espada de 60 ~90 cm de comprimento –
“Eu vou fazer você implorar por sua vida! Então é bom começar a rezar agora, desgraçado!”
Akio gritou com um sorriso vitorioso em seu rosto. E com um gesto de mão ele ordenou que todos os seus capangas atacassem Eric.
Todos, exceto Akio correram em disparada em direção a Eric que em nenhum momento ameaçou fugir. Então a única coisa que passou pela minha cabeça é que ele iria enfrenta-los. Mas então o primeiro aluno chegou perto e acertou o rosto do Eric com um soco certeiro, fazendo-o cair de costas no chão.
“Hehehehe...”
Eric deu uma risada forçada e apoiou uma mão no chão para se levantar. Um fio de sangue escorre pela sua boca.
Mas ele não teve tempo nem de endireitar seu corpo antes de um segundo aluno o acertar com outro soco, fazendo Eric cair novamente.
Todos os alunos formaram uma roda em volta do seu corpo e começaram a chuta-lo, ainda no chão, sucessivamente.
Por que ele não reage?! Eu sei que ele pode tentar algo! Ainda assim Eric não mostra nenhum sinal de que vai tentar se defender... Eu não consigo mais ficar olhando, mas ao mesmo tempo não consigo desviar os olhos.
Após uma eternidade de chutes, dois alunos seguraram Eric pelos braços e o levantaram. O rosto dele tem agora vários hematomas e cortes. Seu uniforme está manchado de sujeira e sangue.
Então Akio que até agora havia ficado apenas olhando começou a se aproximar.
“Me responda. Você acha que nesse momento eu estou com pena de você? Que somente essa punição é o suficiente?”
Eric deu uma risada fraca, o que acabou irritando ainda mais Akio.
“Sinto dizer que estou apenas começando! Sua punição só vai acabar quando eu quiser! E não vou me sentir satisfeito até acabar com a sua raça!”
Akio ficou a apenas dois passos do Eric e começou a ataca-lo. Acertando vários socos em seu rosto e chutes em seu estômago. Os sons dos golpes tem um tom alto e assustador que me deixam completamente aterrorizada.
CLAP! CLAP!
“Eu vou deixar você se arrastando no chão!”
CLAP! CLAP! CLAP!
“Depois vou procurar aquela vadia! E fazer ainda pior com ela! Após espanca-la...”
CLAP! CLAP!
“Eu vou usa-la como eu quiser.... Já posso sentir aquele corpo frágil nas minhas mãos! Eu vou usar seu corpo virgem de todas as formas que eu imaginar... Mas não pense que eu vou ser egoísta! Após me satisfazer completamente vou dividir ela com todos que estão aqui hoje!”
CLAP!
“Cada um deles vai ter um pedacinho daquele corpo lindo... Mas é bem provável que não esteja mais tão lindo assim quando a gente terminar! Hahahaha!”
CLAP! CLAP! CLAP!
Akio parou de bater no Eric somente para apreciar sua expressão. Mas... Não há nada ali. Quero dizer, ele não parece estar se importando com o que Akio fala. Ele não parece estar sentindo nada.
“Ah! Não me olhe com essa cara! Se você quiser... Eu posso deixar você olhar enquanto a gente usa ela...”
Eric não respondeu nem demonstrou alguma emoção, o que claramente deixou Akio ainda mais furioso.
Mordendo os lábios ele voltou a atacar Eric.
CLAP! CLAP! CLAP! CLAP! CLAP! CLAP!
Por que?! Revide, droga! Assim eles vão acabar te matando! O que eu posso fazer?!
Quebrei um galho próximo a mim, ajeitei minha mochila no meu ombro e desci da árvore. Somente quando cheguei ao chão foi que percebi o quanto minha arma é estúpida. Ainda assim me aproximei.
Nenhum deles pareceu notar minha presença, afinal estão ocupados demais torturando Eric.
Apertei o galho com minhas duas mãos trêmulas, engoli o ar rispidamente e corri para cima do Akio que está de costas para mim.
Antes que os outros pudessem fazer algo, o galho acertou a parte de trás da cabeça do Akio e se partiu em dois. Ele caiu de lado gritando de dor. O local onde o acertei ficou roxo no mesmo momento. Mais eu não tive tempo nem de virar o rosto alguém me acertou com um soco, e desabei, rolando pelo chão.
— Ah! Ugh! —
Tudo ao meu redor está girando, enquanto meu corpo está paralisado pela dor.
Tentei focar minha visão no grupo que está na minha frente. Akio se levantou, ainda gemendo de dor. Assim que seus olhos me encontraram ele mordeu os lábios com força e correu na minha direção e no segundo seguinte lançou um chute contra o meu abdômen.
“VADIA! EU VOU MATAR VOCÊ!”
Sim, ele vai me matar. Sua expressão não o deixa mentir. Meu fim vai ser tão deprimente assim...?
A vida é mesmo um sonho frágil. Eu vou ter um fim horrível pelas mãos de um ser estúpido e nojento. Eu perdi no momento em que pensei que minha vida sem sentido poderia mudar. Eu nem ao menos tenho uma pessoa para me despedir!
Akio se preparou para esmagar minha cabeça com seu pé direito, mas algo o acertou antes.
Eric bateu seu cotovelo direito contra o pescoço do Akio, que caiu como uma pedra ao meu lado. Todos os outros capangas não conseguiram reagir rapidamente de tão perplexos que estavam. Somente dois segundos depois que eles acordaram e perceberam que Eric havia se soltado e num gesto desesperado correram para cima dele.
Após isso tudo virou uma bagunça.
Eric se virou para o grupo que se aproxima em uma fileira. Eric acertou o primeiro com um chute na boca do estômago e rapidamente acertou o segundo com um soco no meio do rosto antes mesmo deles tentarem ataca-lo. Os dois caíram no chão se retorcendo e gemendo de dor.
Então Eric correu em direção ao terceiro. O aluno que parecia ser dois anos mais velho tentou acerta-lo com um soco, mas Eric desviou facilmente, até com uma certa elegância, e contra atacou com uma cotovelada nas costas, diretamente na coluna. O terceiro aluno caiu de cara no chão.
Um segundo depois a katana de madeira cortou o ar na direção do Eric. Mas antes de acerta-lo a espada parou ao bater violentamente contra o braço direito do Eric. Ele usou o próprio membro para parar a espada. Com um grito o delinquente levantou sua katana para cima e lançou uma série de ataques em diferentes direções. Eric desviou dos três primeiros golpes e defendeu o quarto ataque usando seus dois braços em forma de x protegendo seu rosto. Depois ele segurou a espada com a duas mãos e empurrou o punho dela contra o estômago do aluno.
A pancada foi tão forte que o barulho de algo quebrando ecoou pelo local. Um segundo depois a espada se partiu em dois.
O quarto aluno caiu de joelhos sem ar. Eric então levantou a metade da espada que segurava e lançou contra o rosto do garoto, que caiu de lado inconsciente.
Os outros dois alunos estão parados com os olhos arregalados. Obviamente paralisados de medo enquanto recuam lentamente. Assim que Eric olhou na direção deles os dois fugiram. Correndo de volta para o colégio.
Tudo acabou tão rápido que eu posso sentir meu corpo vibrar de tanta adrenalina. A minha mente está vazia e minha visão trêmula. Parece que estou vendo meu mundo ser despedaçado na minha frente. Eu nunca havia passado por algo assim antes. Na verdade eu nunca pensei que alguma coisa assim poderia acontecer comigo. Algo me diz que agora eu conheço a verdade sádica e grotesca sobre esse mundo.
Me sentei e comecei a recuar rapidamente para trás, ainda atordoada.
O rosto do Eric está completamente machucado. Sangue escorre pela sua boca e por outros três cortes em diferentes locais. Pela primeira vez no dia seu sorriso alegre e descontraído havia desaparecido. Sendo substituído por outro; sádico, frio e cruel.
Eric caminha lentamente na direção do Akio, agora cinco passos na minha frente. Assim que chegou ele segurou o colarinho da camisa dele e começou a arrasta-lo na minha direção.
A camisa dele está apertando seu pescoço, fazendo Akio arfar e balançar os braços desesperadamente. Eric, sem se importar, o arrastou até ele ficar a um passo de mim, e em seguida o largou violentamente no chão.
“Agh... Ah... V-você é um monstro!”
Akio está tremendo. Tanto que seus dentes batem uns contra os outros.
“Monstro?!”
Eric soltou uma risada fria, sem emoção.
“Sou muito pior que isso!”
Ele chutou Akio no estômago que se encolheu até ficar em posição fetal.
“Peça perdão a ela... Por todas as besteiras que você falou... Pelo modo como você a tratou... Peça perdão OU EU MATO VOCÊ!”
Eric usou seu pé direito para pisar em cima da cabeça do Akio, a pressionando contra o chão.
“Me, me desculpe! Me desculpe!”
Akio se esforçava para falar. A dor que ele está sentindo deve ser insuportável.
“DESCULPA!”
“Bom garoto...”
Eric se ajoelhou ao lado do Akio. Primeiramente ele levou um dedo até seu próprio rosto e limpou um pouco do sangue que escorria pela sua boca. Depois encostou sua mão na cabeça do Akio.
“Eu não quero ver você perto dela novamente. ENTENDEU?!”
“C-certo! CERTO!”
Eric empurrou o rosto do Akio contra o chão novamente até ele comer terra.
“ENTENDEU?!”
“Entendi! Entendi! Entendi! Me desculpe! Por favor... Por favor me deixe ir!”
Akio começou a chorar desesperadamente.
Não sei como reagir. Estou com raiva, mas também estou com pena... Nesse momento a pessoa que mais me assusta é o Eric. Eu estou com medo de fazer algo de errado e acabar como o Akio.
“Sério?! Logo agora que começou a ficar interessante.”
Eric riu. Deliciando cada lágrima que Akio derramava.
É cruel. O que houve com o garoto que estava comigo até pouco tempo atrás?
Não há uma resposta. O que devo fazer? Como devo encarar essa situação? Eu não posso simplesmente abandona-lo. Mesmo ele tendo feito tudo isso... Akio ainda é humano... Ninguém merece passar por algo assim, independente do que ele tenha feito comigo e com o Eric.
Nem mesmo o pior humano merece passar por tal sofrimento.
— Chega... Eric... —
Silêncio.
Eric se levantou lentamente e num gesto perplexo levou uma mão contra seu próprio rosto. Como se percebesse tarde demais tudo o que acabou de fazer.
“Me... Desculpe por isso.”
Ele me observou com uma expressão suplicante. Algo que até esse momento não imaginei que veria em seu rosto.
Eric se virou e cambaleante começou a caminhar procurando uma saída.
Nesse momento eu entendi o verdadeiro motivo para ele não revidar. Eric não queria machucar alguém, pois no momento em que ele o fizesse não conseguiria mais parar. Seu autocontrole seria despedaçado.
Aquele Eric sorridente e calmo do qual tive tanta inveja é somente uma fachada, construída com muito esforço. Mas independente do esforço, basta apenas uma ventania para colocar tudo para baixo.
Me levantei com muita dificuldade e o alcancei em dois passos. Um pouco hesitante, segurei seu braço esquerdo e o puxei, forçando Eric a parar.
Também percebi nesse momento que não posso abandoná-lo. Todo esse incidente aconteceu por minha culpa. Por causa da minha ignorância. Eu tenho a impressão de que se eu deixá-lo ir, algo de ruim acontecerá.
— Esse olhar não combina nada com você. —
Dei um sorriso.
A essa altura eu apenas rezo para minhas intenções o alcançarem. Eu quero ajudá-lo. Sua atitude, sua expressão, seu sorriso forçado, mostra apenas que ele esconde mágoas profundas. De certa forma acho que posso entender sua dor.
Não sei como explicar. É como se eu já o conhecesse de algum lugar... Mesmo tendo certeza que nunca o encontrei antes. Também sinto que sou a única que pode impedir que ele caia em desespero.
Eric sorriu. Um sorriso ainda incerto, mesmo assim um sorriso que me acalmou.
Eu prefiro ele dessa forma.
O sinal da escola tocou.
“Vamos embora... Esse lugar vai ficar cheio de pessoas.”
Eric colocou as mãos nos bolsos e começou a caminhar em direção a saída.
“Ah! E quanto a você...”
Ele se voltou para Akio novamente.
“Espero que ninguém saiba o que aconteceu aqui.”
Eric piscou e voltou a andar.
Essa não foi a primeira vez que esse incidente ocorreu.
Esse dia já se repetiu dezenas, talvez centenas de vezes, mas nem sempre da mesma maneira.
Em algumas Emily se recusou a descer da árvore. Deixando Eric apanhar até não conseguir se manter de pé.
Outras vezes ela apanhou junto com Eric, que mesmo podendo não fez nada para ajudá-la.
Em algumas poucas vezes não houve uma briga. Nenhum pingo de sangue derramado.
Mais há uma coisa em comum em todas essas repetições.
Uma certa pessoa sempre cruza o caminho desses dois. E suas ações sempre acabam mudando o destino do mundo na esperança de deter o inevitável.
- CAPÍTULO -
03
Estamos em um beco vazio a poucos metros da escola.
Eric tenta lavar seu rosto com a água de uma torneira, mas dois cortes se negam a parar de sangrar. Os hematomas nos seus dois braços se sobressaem em sua pele branca.
Quando ele percebeu que eu o estava observando, virei o rosto.
“Você deve estar se perguntando por que não revidei, não é?”
Ele falou sem olhar para mim, tirando as palavras da minha boca.
“Eu não queria agir como eles. Além disso, era uma promessa... Mas eu a quebrei duas vezes no mesmo dia.
Eric fechou a torneira e se apoiou em uma parede ao seu lado.
“Não entendo por que fiz isso. Eu não conheço você... Eu nunca me importei com você antes... Mas assim que vi, já tinha acertado aquele cara na sala de aula.”
[ ... ]
“E logo depois aconteceu novamente. Quando eu vi... Aquele bastardo te bater... Eu não consegui me controlar. No segundo seguinte já estava batendo nele e não conseguia mais parar.”
Com um suspiro Eric continuou.
“Eu acabei me tornando pior que todos eles.”
Eu entendo como Eric se sente. Afinal algo parecido aconteceu comigo naquele momento. Eu senti como se já o conhecesse. Mesmo desejando correr e procurar um abrigo longe daqueles delinquentes... Abandonar Eric naquele lugar e me salvar... Eu poderia ter facilmente escapado, ainda assim não fugi. Era como se alguma coisa me prendesse àquele lugar. Me forçando a ficar ao seu lado.
No horizonte o sol já está quase se pondo, anunciando o fim do dia.
— Emily Noah. Prazer em conhecê-lo.—
Estendi minha mão na direção do Eric mais ele não a segurou.
Ele parece estar paralisado. Como se ter mencionado meu nome o tivesse pegado de surpresa. Mas posso jurar que não é só isso...
Após alguns segundos ele despertou e de uma forma meio incerta segurou minha mão.
“Até que enfim pude saber seu nome Sra. Emily. Ser espancado até que valeu a pena, então.”
Ele sorriu.
— Você é o cara mais babaca que já conheci. —
“Aposto que sou o único ‘cara’ que você já conheceu. Mas não vou ficar jogando isso na sua cara a todo momento.”
Ele deu uma risada sarcástica. Fiquei com vontade de gritar com ele mais o dia já teve gritaria o suficiente.
“É melhor eu ir para casa, ou minha tia vai ficar preocupada.”
Tia? O normal nessa ocasião seria ele dizer mãe, pai ou família. Mais ele usou tia. Será que ele não mora com os pais?
— Eu também tenho que ir. Se não formos suspensos nos encontraremos em breve... Eu acho. —
Dei um sorriso breve.
Eric soltou minha mão, mas não se moveu. Pela segunda vez consecutiva seu corpo estava enrijecido, congelado. Três segundos depois ele começou a aproximar seu rosto do meu.
Não consigo me mover. Também estou paralisada com o que pode acontecer a seguir. Meu coração bate violentamente no meu peito. Ele vai me beijar?
Mais diferente do que imaginei o rosto dele foi em direção ao meu ouvido direito.
“Eu tenho a impressão de que há alguém escondido nos observando... Estou tendo essa sensação desde que saímos da escola. Acho que essa pessoa pode ter visto o que aconteceu lá e vem nos seguindo desde então...”
Eric sussurrou.
Eu estava prestes a perguntar quem poderia ser essa pessoa quando um barulho de passos começou a ecoar pelo beco, junto de uma voz masculina que parece cantarolar uma canção desconhecida.
Virei meu rosto na direção do recém chegado. Minha adrenalina faz minhas mãos frias tremerem violentamente.
Um garoto parou a vinte passos de distância e ficou nos observando. Eric, ao meu lado está tão tenso quanto eu.
Eu já o vi antes... Sim. É o mesmo garoto que vi mais cedo enquanto olhava para fora da janela da minha sala.
Mas algo mais está fora dos eixos.
Esse lugar. Esse garoto. Essa exata situação já aconteceu antes? Sim... Não sei como, mas isso já aconteceu antes!
— O que direi agora é apenas uma ilusão que surgiu sem prévio aviso na minha mente. —
Ele desapareceu e num piscar de olhos estava na frente do Eric. Ele o matou imediatamente atirando contra sua cabeça com uma arma que eu não o vi sacar.
No segundo seguinte ele estava sorrindo enquanto me encarava. E mais uma vez sem hesitar disparou duas vezes, contra meu peito e meu pescoço a queima roupa.
Eu já fui assassinada por esse mesmo garoto.
Mas tenho certeza que nunca o encontrei antes.
Então de onde vem essa sensação de déjà vu?
O garoto de cabelos pretos passou a mão sobre seu rosto, tirando lentamente a franja que caia em frente aos seus olhos. Seu rosto é uma máscara fria, enquanto seus olhos parecem congelar tudo o que vê.
Ele aumentou o tom de sua voz para que nós pudéssemos ouvir o que ele cantarolava, sem um ritmo, como se estivesse apenas lendo a página de um livro.
“Enquanto essa borboleta de assas negra voa por um mundo de tristeza e dor. Suas preces, seus desejos, parece que não há ninguém para atendê-los. No final de sua vida ela vê que nunca houve um lugar para ela chamar de lar.”
Isso é.... Impossível.
“Consegue se lembrar dessas palavras Emily?”
Meu corpo está congelado. Como ele pode saber o meu nome? Tirando Eric e as pessoas da minha classe não há mais ninguém nesse lugar que me conheça. Já me encontrei com ele antes? Não... Se eu tivesse conhecido alguém como ele tenho certeza que o reconheceria. Por que minha memória está tão confusa?!
“Devia se lembrar. Afinal foi você quem as escreveu.”
Isso é verdade. Essa letra que ele cantarolou com certeza foi escrita por mim.
Estou com medo. Medo de olhar para ele. Medo de tudo que está prestes a acontecer.
“Emy...”
Eric sussurrou.
“Esse cara é perigoso. Nós temos que fugir agora.”
Ele recuou dois passos e eu fiz o mesmo.
Ao perceber nossa tentativa de fugir o garoto de cabelos pretos deu um sorriso entretido, levou sua mão direita até sua cintura e levantou um pouco sua camisa.
Engasguei com meu próprio ar ao reparar na pistola presa em um coldre.
A arma que ele usou para me matar...?
Eric segurou minha mão com força e me puxou, forçando meus pés a correrem na direção oposta ao garoto de cabelos pretos.
Sem perguntar nada comecei a correr o mais rápido que meu corpo permitia.
Saímos às pressas do beco estreito e entramos em uma larga avenida que ainda está lotada de alunos que retornam para as suas casas. A cada poucos metros eu esbarro em alguma pessoa. Eric me puxa poucos metros a minha frente. Nós dois viramos na primeira esquina que apareceu, numa tentativa de despistar aquele garoto.
Mais o que está acontecendo?! Aquele garoto é perigoso? Eric, por um acaso, o conhece?
Eu quero enchê-lo de perguntas, mas nesse momento estou mais preocupada em correr. Mas meu corpo está quase em seu limite. Minha garganta arde, e já está quase impossível continuar respirando. Eric, à minha frente não parece estar com dificuldades para correr. A cada poucos passos ele olha para trás, se certificando que não estamos sendo seguidos.
Então uma risada prolongada cortou o ar, ecoando por todos os lados.
Nós dois paramos bruscamente, procurando a origem do som. A rua está vazia. Só que isso mudou de um segundo para o outro.
Uma sombra negra se formou entre eu e Eric, nos forçando a se separar. Aquilo é como um turbilhão de chamas negras. Aumentando e diminuindo. Se espalhando e em seguida se comprimindo numa velocidade impossível. Tenho a impressão de que se meu corpo tocar essas chamas acabarei sendo devorada por elas. Porém esse fogo que não é quente. Pelo contrário, é frio.
O fogo bloqueia meu caminho. Eric, do outro lado, também se vê impotente, já que não pode fugir sem me deixar para trás.
Após alguns segundos as chamas começaram a mudar. Se espalhando e se remodelando, como se tivesse alguém invisível esculpindo o fogo. E em uma fração de segundos aquele garoto de cabelos pretos estava parado entre eu e Eric.
Eric reagiu imediatamente dando três passos rápidos para cima do garoto desconhecido. Mas do mesmo modo que reagiu ele parou bruscamente.
Em um picar de olhos o garoto de cabelos pretos sacou sua arma e a apontou contra o rosto do Eric.
“Ah... Ah... Quem é você? O que você quer?”
Eric respira rapidamente, incapaz de controlar seu próprio pânico.
“Não sou daqui.”
O garoto de cabelos pretos me encarou com seus olhos frios. Um sorriso indescritível em seu rosto.
“Fique onde está, Eric. Eu não vou machuca-la.”
Eric ficou surpreso ao ouvir seu próprio nome vindo da boca dele. Então Eric também não o conhece... Como ele pode saber nossos nomes?
“Por que devo confiar em você?”
“Você não tem escolha... Não é?”
Ele está certo. Nós três estamos em um impasse. Eric também está ciente disso.
Meu coração bate tão forte que meu peito chega a doer. Minhas mãos tremem. Mesmo com todos os meus sentidos me mandando correr eu não consigo. Meu corpo não me obedece! Ainda assim, alguma coisa na minha cabeça me diz que mesmo fugir será inútil. Ele me alcançará da mesma forma que fez agora.
O garoto de cabelos pretos engatilhou a pistola ainda com um sorriso no rosto.
“Não pense em se mover.”
Um silêncio súbito.
— AAAAAAGH!! —
Foi como se alguém começasse a apertar meu pescoço com toda a força. Mais não havia ninguém me enforcando. Ainda assim todos os ossos do meu pescoço estão sendo comprimidos enquanto uma dor agoniante toma todo o meu corpo.
— AHHH! AGHT! AGHHH! —
Parece que a gravidade da terra aumentou assustadoramente. Não consegui ficar de pé e acabei caindo de joelhos. Tento respirar, mas também é inútil. É como se todo o oxigênio tivesse desaparecido.
Eric parece estar passando pela mesma tortura que eu. Ainda assim ele se força a continuar de pé. Suor se misturando aos vestígios de sangue ao seu rosto. Já o garoto de cabelos pretos continua com a arma quase tocando a testa do Eric. Ele não parece estar sentindo nada. Claro. Ele deve ser o responsável por tudo isso.
Esse garoto então olhou para mim. Suas íris brilham numa cor azul cintilante. Um azul mais brilhante que o próprio céu. Mas, aos poucos, a cor de seus olhos está mudando novamente, escurecendo até ficar com a cor preta. Tão escura quanto as trevas mais profundas.
Da mesma forma que começou, acabou. Tudo voltou ao normal...
Pelo menos foi o que pensei.
Ao olhar para o chão percebi algo impossível. O asfalto foi substituído por uma grama verde mal aparada. Nós três não estamos mais no mesmo lugar de antes.
Meu pescoço está livre novamente, permitindo que eu consiga respirar. Mas mesmo sem a gravidade impossível sobre mim, ainda não consigo me levantar.
Olhei atordoada para os lados.
Centenas de criptas e túmulos se arrastam até onde a vista pode alcançar. Estamos em um cemitério. O vento forte carrega as folhas secas ao meu redor. O cheiro do ar é diferente do ar da cidade. O clima morno é diferente do clima frio em que eu estava a um segundo atrás.
Não estou somente em um lugar diferente como também em uma estação do ano diferente.
Isso é impossível... Mas é real demais para ser somente um dos meus sonhos esquisitos. Pensando bem todos os meus sonhos esquisitos parecem reais.
Eric observa tudo ao seu redor com a mesma expressão de alguém perdido em uma floresta durante uma noite sem lua. Nós dois voltamos nossa atenção para o garoto de cabelos pretos que ainda age como se nada tivesse acontecido.
“Bem vindos.”
Ele sussurrou e finalmente abaixou a pistola. Em seguida, começou a caminhar e passou por mim até ficar a uns cinco passos de distância.
“O que está acontecendo?”
A voz do Eric soou quase como um grito. Suas palavras frias e hesitantes.
“Estamos no dia 31 de Outubro de 1984. Londres.”
1984... Então não estamos apenas em um lugar e uma estação diferente. Como também em uma ano diferente. Não é só isso... Aquela frase que ele disse logo após aparecer e agora essa data... Tudo isso está relaciona comigo. Mas de que maneira?
“Isso é impossível.”
Eric retrucou sem pensar duas vezes. Ainda assim sua voz pareceu carregada de dúvidas.
Ele se aproximou de mim e estendeu sua mão para me ajudar a levantar. Fiquei de pé com muita dificuldade. Parece que todos os músculos do meu corpo estão enrijecidos.
“Você sabe o que aconteceu nesse dia?”
Precisei de alguns segundos para perceber que essa pergunta foi dirigida a mim.
Não posso ignorar a coincidência por mais tempo. De qualquer forma esse garoto já parece saber a resposta.
— Esse é o dia do meu nascimento. —
Sussurrei.
“Errado. Esse é o dia da sua morte.”
Meu corpo tremeu de perplexidade. Tudo o que está acontecendo é atordoante, sem nenhuma lógica. O que ele quer dizer com isso? Como posso pensar racionalmente quando não sei mais o que é real ou não?
“Você morreu a três dias atrás. E hoje é seu funeral.”
Funeral...
O garoto de cabelos pretos voltou a andar, desviando dos túmulos. Mesmo contrariando meus instintos comecei a segui-lo com Eric, em silêncio ao meu lado.
Após alguns metros o garoto a minha frente parou. Ainda hesitante, fiquei a dois passos atrás dele.
Nesse momento minha perplexidade foi transformada em espanto.
Ao longe posso ver um grupo de sete pessoas vestidas de preto. Reconheci dois deles imediatamente no meio daquele grupo.
Os dois estão tão jovens... Mais com certeza são eles.
Meu pai está usando um terno preto e óculos escuros. Minha mãe está a sete passos de distância dele, vestindo um longo vestido preto e um chapéu azul marinho com um laço branco no lado. Reparei também o pequeno caixão branco pendurado acima de um profundo buraco. Esse é o enterro de uma criança.
“Você morreu no dia 29 de outubro de 1984 e hoje é seu enterro. Mas a verdade é que tudo isso não passa de uma farsa para ‘simular’ a sua morte. Por que se você estivesse morta, ‘eles’ não conseguiriam usar você como uma arma.”
Uma arma... Eu sou uma arma? Mas que droga é essa?!
“Sua mãe fazia parte de uma organização que tem planos para uma distopia. Ou seja: A dominação mundial.”
“Como assim a Emily seria usada como uma arma? O que ela tem a ver com isso tudo?”
Eric adiantou a minha pergunta, agora com um tom firme e autoritário. Ao que parece ele já superou o pânico e a confusão do início.
O garoto de cabelos pretos ignorou Eric e prosseguiu.
“Cinco anos depois os lideres dessa organização descobriram que você ainda estava viva. E assim ‘eles’ começaram a caçar Lillah e você.”
Caçar? Minha mãe... E eu...
Então estou certa. Tudo isso é por minha causa.
Ao meu lado Eric se agachou e tentou pegar uma folha seca no chão, mas sua mão a atravessou como um fantasma atravessando uma parede.
“Nixel, que até então trabalhava para essa organização resolveu ajudar Lillah em sua fuga. Como resultado vocês três vivem se mudando de um lado para o outro a fim de despistar as pessoas que querem você.”
Pude ver Eric tremer ao ouvir o nome do meu pai. O garoto de cabelos pretos também percebeu e riu em resposta.
Olhei para meus pais. Mesmo estando a apenas dez passos de distância eles não perceberam nossa presença.
“Eles não podem ver ou sentir você. Isso é uma memória. Você não viajou no tempo. Tecnicamente ainda estamos em 1998. Foi apenas a sua consciência que viajou até aqui.”
— Como isso é possível? —
“Você não precisa entender agora. Nesse momento preciso que você apenas acredite em tudo que estou mostrando.”
Acreditar. Por mais que ele diga isso... Toda essa situação é demais para digerir. Eu sou algum tipo de arma que será usada para uma organização dominar o mundo? O motivo para eu estar sempre me mudando é por que na verdade estamos fugindo? Nós nunca tivemos uma vida de verdade por minha culpa?
Voltei minha atenção ao funeral.
Não houve últimas palavras, nem despedidas.
O caixão começou a ser enterrado assim que o padre deu sua última benção. Não houve lágrimas nem pesar no rosto dos meus pais. Apenas um silêncio insuportável.
E com essa cena as lágrimas que eu insistia em segurar começaram a cair lentamente.
— Por que você está mostrando isso? —
“Eu preciso que você descubra a verdade. Para isso acontecer é necessário mostrar esse dia.”
Mais uma resposta vaga. Ele me pede para acreditar mais tudo o que ele faz é se esquivar, me deixando ainda mais confusa.
O enterro acabou.
Meu pai foi o primeiro a sair enquanto segurava a mão de uma criança de cabelos pretos e seguiu em direção a um carro preto onde uma mulher de cabelo alaranjado o está esperando no banco do carona. Ela está gravida. Posso perceber isso mesmo de longe. E aquela criança que aperta a mão do meu pai com força... É impossível não notar a semelhança com o garoto que está agora na minha frente.
‘Isso é uma memória’. Ele disse antes. Esse garoto pode me mostrar esse dia porque ele estava presente.
Após Nixel partir, Lillah também foi embora, por um caminho oposto. Antes mesmo do caixão terminar de ser enterrado.
Um caixão vazio.
“Não podemos ficar aqui por mais tempo.”
O garoto de cabelos pretos respirou profundamente e fechou os olhos. No momento em que ele os abriu suas íris estavam azuis novamente. Um fio de sangue escorre pelo seu nariz se misturando ao suor que se forma em seu rosto. Está obvio que mostrar uma memória exige muito dele.
No segundo seguinte tudo ao meu redor começou a mudar.
A gravidade aumentou novamente, mas dessa vez consegui me manter de pé. Meu pescoço arde como se um liquido fervente descesse pela minha garganta, me sufocando enquanto destruía todo o interior do meu corpo. É agonizante! Tudo isso é tão desesperador!
Nunca antes na minha vida eu me senti tão vazia... Tão angustiada.
Olhei à minha volta. Estamos na cidade novamente. No exato local onde eu estava a pouco tempo atrás. Estou tão cansada. A fadiga toma cada conta do meu corpo como se eu tivesse corrido até o meu limite. Até não conseguir mais ficar de pé.
E como resultado desabei como uma pedra no chão.
“Emy?! Emy?! Você está bem?!”
Posso ouvir a voz do Eric. Parece tão distante, mesmo sabendo que ele está a poucos passos de distância.
Levantei um pouco o rosto. O garoto de cabelos pretos ainda está na minha frente. A arma em sua mão apontada diretamente para a testa do Eric, como se nada naquele cemitério tivesse acontecido.
“Ela vai ficar bem. Não precisa se preocupar.”
O garoto girou a pistola em sua mão de modo que a ficou segurando apenas pelo cano.
“Quero que você fique com isso.”
Ele estendeu a arma para Eric.
“Você vai precisar.”
Um sorriso diabólico tomou seu rosto e Eric relutantemente segurou a pistola. Assim que o garoto de cabelos pretos a soltou Eric apontou a arma para ele.
“Você não vai atirar.”
Sua voz soou sem nenhum pingo de dúvida.
“Como pode ter tanta certeza?”
Eric retrucou, a arma tremendo levemente em sua mão.
“Você já teve essa chance várias vezes. E em nenhuma delas atirou.”
“Aquilo era mesmo uma visão do passado?”
“Somente mostrei uma parte da verdade. Quanto a acreditar ou não isso cabe a você.”
“O ‘eles’ a quem você se refere...”
O garoto de cabelos pretos riu enquanto limpava o fio de sangue que escorre pelo seu nariz com a manga da camisa.
“Vou deixar que você descubra sozinho a resposta para isso.”
Eric abaixou a arma, claramente desistindo de tentar outra pergunta. Sabendo que esse garoto vai apenas se esquivar novamente.
Então, com um último sorriso, o garoto de cabelos pretos passou pelo Eric e desapareceu de vista ao virar em uma esquina.
Minha cabeça dói. Não só por causa do cansaço, mas por causa de tudo o que vi. Eu sinto como se toda a minha vida tivesse sido rasgada em pedaços. Toda a minha vida é uma mentira?
Tentei me levantar, mas não consegui nem ao menos me apoiar em meus braços. Meu estômago está embrulhado, como se eu fosse vomitar a qualquer momento. Tudo gira ao meu redor. Todos os barulhos da cidade parecem ter aumentado. Sinto como se meu cérebro fosse explodir a qualquer momento.
Até mesmo o cheiro desse lugar está me deixando enjoada.
Nada disso é real não é?
Isso é somente um daqueles pesadelos que eu venho tendo todas as noites. Sim, eu devo estar dormindo! Não posso estar morta. Meus pais não podem ter escondido essas coisas de mim por tanto tempo. É só um pesadelo... Em breve irei acordar.
Minha tentativa desesperada para me manter consciente não está funcionando. Tudo a minha frente está se apagando, como se alguém a apagasse com uma borracha. Não consigo mais mover nem mesmo um dedo da minha mão. Estou ficando inconsciente... Ou talvez eu esteja acordando.
Eric ainda está imóvel, olhando para o chão. Mas assim que ele levantou seu olhar para mim um arrepio percorreu minha espinha. Sua feição é fria, aterrorizante, vingativa. Ele agora é alguém totalmente estranho para mim, completamente diferente do Eric que pensei conhecer.
Caído em frente a ele está alguém que ele odeia. Depois do que ele ouviu parece que sua confiança desapareceu. Ele rejeitou tudo que pensava sobre mim.
Agora ele me vê como uma inimiga.
Eu também não me importo mais... A única coisa preciosa para mim, amor que sentia pela minha família, foi tirada de mim. Eu não tenho mais nada.
Minha visão escureceu e cai na inconsciência.
‘Como você se sente sendo odiada, Emily?’
Uma criança de sete, talvez oito anos perguntou para Emily, que estava boiando na superfície de um lago (Talvez um oceano?) de águas geladas. Apenas seu rosto pálido estava para fora da água. Seus olhos estavam abertos. Imóveis. Sem demonstrar sinal de que iria piscar em nenhum momento.
Já a criança estava de pé sobre a água. Seus longos cabelos castanhos e seu pequeno vestido branco balançando levemente por causa do vento. Ela olhava para baixo encarando Emily sem nenhuma expressão em seu rosto.
‘Você se sente superior?’
‘Você se sente incrível, não é?’
‘Afinal você nunca teve esse tipo de relação com uma pessoa antes.’
‘Você se sente como se estivesse por cima de todos os outros.’
‘Mais não se esqueça.’
‘Não deixe que ninguém se aproxime muito de você. Por que você é um monstro. Uma arma. Um demônio.’
‘Todos que ficarem ao seu lado vão morrer dolorosamente.’
A palavras seguintes vieram em sussurros.
‘Todos vão sofrer.’
‘Por que você está destinada a ter um final trágico, e não um final feliz.’
A criança desapareceu como fumaça enquanto o corpo imóvel da Emily começou a afundar.
Ela afundou, lentamente. Até desaparecer na escuridão do fundo do oceano.
- CAPÍTULO -
04
O vento frio da noite fez Emily estremecer.
Ela estava deitada no banco de uma pequena praça. Eric estava sentado em outro banco, olhando na direção dela, mas sem enxerga-la de verdade.
[Morte. 28 de Outubro de 1984. Enterro. 31 de Outubro. Emily, Nixel, Lillah. Caçados.]
“O que pode significar tudo isso?”
[‘Você já teve essa chance várias vezes, e em nenhuma delas você atirou.’ Ele disse. Mas onde o encontrei antes?]
[Seus olhos ficaram azuis e em seguida estávamos dentro de uma de suas memórias. Como?]
“Eu não entendo. Mas não posso duvidar de que é possível.”
[Esse cara está envolvido de alguma forma com essa organização. ‘Eles’. Quanto a isso, não resta nenhuma dúvida.]
Eric suspirou e deixou sua visão cair para onde estava Emily, que permanecia desacordada.
[O que tem de tão especial em você...? O que você é....?]
Emily se mexeu e abriu os olhos. Ao encontrar Eric ela se sentou em um pulo. E ao perceber a situação em que estava corou de vergonha e se encolheu.
“Está melhor?”
Emily demorou para responder. Ela estava escolhendo bem as palavras que iria usar. Ou melhor, estava apenas sendo cuidadosa.
“Sim... O que aconteceu?”
“Você apagou depois de tudo aquilo, então deitei você aí. Afinal, não sei onde você mora.”
Emily corou novamente ao imaginar Eric observando-a dormir. Mas ao lembrar de tudo que aconteceu antes ela abaixou o rosto. Ainda com aquela persistente sensação de estar vivenciando um terrível pesadelo.
“O que você vai fazer agora? Vai perguntar diretamente para seus pais?”
“Não sei.”
A voz da Emily saiu num sussurro.
Eric virou o rosto, irritado com a resposta.
“Então você vai apenas fingir que isso nunca aconteceu?”
“EU NÃO SEI! DROGA!”
Emily gritou com todas as suas forças e se encolheu mais ainda enquanto a imagem dos seus pais naquele cemitério passava pela sua mente. Uma morte falsa. Mas a falta de sentimentos por parte deles era o que mais a incomodava.
“Eu não sei o que fazer... Tudo isso é demais para mim. É apenas um pesadelo... Logo vou acordar.”
Apesar de dizer isso, Emily sabia que já estava acordada. Ainda assim ela forçava sua consciência a aceitar uma realidade que não existia. Ela não sabia mais o que fazer. Ela não sabia mais dizer o que era verdade e o que era mentira.
“Você tem medo, Emy?”
Eric se levantou do banco e caminhou até ficar na frente da garota, que escondia seu rosto entre os joelhos.
“Tem medo de descobrir que toda a sua vida é uma mentira?”
Emily não conseguiu responder. Eric estava certo, ela está com medo. Medo de tudo que aconteceu, e de tudo que ainda estava para acontecer. Suas mãos trêmulas mostram o quão perplexa e fragilizada ela estava.
“Não me importa... Meus pais não são mentirosos. Isso... Tudo o que aquele garoto falou não passa de mentiras. Não há motivos para eu acreditar nele.”
Emily deu uma risada fraca. Isso fez a paciência do Eric acabar completamente. No começo ele pensava que Emily era forte e determinada, mas agora ele percebe o quão fraca e dependente ela é na verdade.
“Nada disso é verdade... Não é?”
Emily encarou Eric. Sua expressão transmitia seu desespero e seu desamparo. Seus olhos lacrimejantes mostravam o quão desesperada ela estava para encontrar uma verdade que não existe.
Sua voz soava como uma grande mentira.
“Covarde.”
Os olhos da Emily estremeceram com a resposta do Eric.
“Isso é o que você é.”
Emily escondeu seu rosto entre os joelhos novamente, incapaz de encará-lo.
“Você diz que tudo o que aquele cara falou é mentira, mas no fundo você sabe que é verdade.”
[ ... ]
“31 de Outubro de 1984, o dia do seu enterro falso. Nessa época Lillah queria proteger você para que não fosse usada como uma arma por essa ‘organização’. E para fazer isso o único modo era matar você. Ou seja, um enterro para enganar essa organização.”
Eric olhou para o céu escuro e cruzou os braços, respirando profundamente.
“Isso de certa forma significa que você foi... Roubada dessa organização. Por um certo tempo a farsa da sua morte deve ter funcionado, mas, cinco anos depois, por algum motivo, ‘eles’ descobriram essa mentira e voltaram a perseguir Lillah. De acordo com aquele cara foi nessa época que Nixel começou a fugir com sua mãe., se mudando de um lado para o outro numa tentativa de te manter longe dessa organização. Sabe o que eu acho de tudo isso?”
Eric encarou a garota a sua frente novamente. Seu olhar tão firme que Emily não conseguia encará-lo.
“Sua vida é que é uma verdadeira mentira!”
Emily engasgou com o próprio ar.
“Você... Você tem alguma coisa... Algo tão valioso, que esses perseguidores... Procuram tão desesperadamente, Emy. Eles farão de tudo... Tudo para conseguir você.”
Eric fechou os olhos novamente e após um silêncio prolongado voltou a falar.
“Você vai fugir?”
[ ... ]
“Vai voltar para casa e fingir que nada disso aconteceu?”
O choro silencioso foi a resposta que Eric não desejava.
“Eu só quero que você saiba de mais uma coisa.”
Ele ficou de costas para Emily.
“Isso não é algo de que se pode fugir. Você vai acabar tendo que encarar a verdade uma hora ou outra. Mas por agora, pense um pouco. Por que aquele cara teve que vir até aqui e mostrar tudo isso para você? Por que ele não deixou que você descobrisse tudo sozinha?”
[ ... ]
“Algo grande está para acontecer, Emy. E você de algum jeito está no centro de tudo isso. Espero que esteja preparada.”
E foi embora. À medida que o som de seus passos diminuía, mais forte o coração da Emily batia. Como se a alertasse para o fato de que ela estava cometendo um grande erro.
Ela se encolheu ainda mais enquanto lágrimas silenciosas escorriam incessantemente pelo seu rosto.
A garota encolhida no banco se sentia como uma ave que teve suas duas asas quebradas se preparando para pular do topo de um precipício.
“Eu sou mesmo... Uma covarde...”
Texto e ilustrações por Anderson William
Revisão por Diogo Lima
Tag der Veröffentlichung: 07.01.2014
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