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Lilian Reinhardt

MEMORIAIS DE SOFIA ( ZOCHA)
( CARROÇÃO DO TEMPO DOS POLACOS)
Livro II


A meus pais
EDGARD E HILDA
(em amada memória)


a meus irmãos
Maria Lúcia, Luiza Francisca
e Jorge Luiz


ÍNDICE

1 – JARDIM DE DENTRO
2 – FLORAÇÃO
3 – DOS GRÃOS DO ALFABETO
4 – DO TEMPO DOS JARROS
5 – PETRUCHO
6 – PULÔVER PÚRPURA
7 – O GUARDA-COMIDA
8 – A VENDA DO RUFINO
9 – OS QUEIJOS DO PADRE SANTO
10 – A PARTEIRA
11 – MISSA EMPÍRICA
12 – ENTRE CORRENTES UMA ELEGIA PARA O IMIGRANTE NIKOLAO


JARDIM DE DENTRO
Zocha à mesa corta a broa de trigo e gema, a caneca de café de porcelana simples comprada no armazém do Zé da Vanda polaca, fumega com sua asa quebrada sobre a toalha bordada de ponto cruz; um singelo maço de dálias sobre o guarda comida povoa os olhos; a blusa branca de crivos secando no varal para a missa de domingo voeja...

No terreiro o carroção cansado guarda silêncios e nos roldões dos pés as notações da pauta da caminhada longa na estrada .Ele viajou a noite inteira com Zocha e Brontcha carregado de hortaliças e agora descansa silencioso no terreiro, próximo a tulha que guarda a ceifa da ultima colheita, as ferramentas ainda exaustas, velado pelos espigais verdejantes da cortina do milharal a abraçar-lhe as vistas.

Na bolsa de pano que Brontcha sua irmã lhe fez com beiradas de crochê Zocha sempre leva consigo algumas palavras/ sementes colhidas dos canteiros do próprio jardim, como contas de um terço para oferecer à Virgem de Chestokova, pois as viagens provocam sempre ventos, perdas e são perigosas, a prudência guarda óleo na lamparina, assim, ela leva, também, num alvejado pano de algodão branco, uma broa de milho e gemas e uma caneca esmaltada.

Ele sempre tem muita fome e sede , se o senhor não me entendeu ouve ......ouve... ouve comigo... os sons da existência das coisas!..."


FLORAÇÃO

...ele vem de longe, de muito longe ele vem!

Outra floração e a fumaça de Maria cruza o céu a incensar os roseirais. A linha do trem passa no encruzo adiante da estrada da vírgula, onde a sintaxe já reescava mais fundo as metáforas do agora.

Os caixotes de pinho estão guarnecidos de cebolas, abóboras, pepinos, espinhos além do tempo espigados. As espigas selecionadas, as flores dos tomateiros recém-colhidos, dos repolhos...e o carroção abastecido toma o rumo do estrada. A poeira úmida levanta sua cortina no estradão.....as flores do agora esmaecem, é preciso apodrecer, é necessário refundar os próprios ossos...


Tombam as pinhas e esparramam-se pelo chão...são sementes que guardam segredos dos olhos maduros do grão. Zocha abraça a aspereza do tronco dessa araucária altiva, levanta as asas do olhar sob a morada de seu ninho onde se guarda a concavidade das suas mãos...mira a distancia do chão à altura dessa impertinente semente que se ergue do chão, e permanece ereta enquanto os mares singram os céus com suas nuvens e as tempestades esvoaçam e arrebentam os outeiros...
Ei-la incólume, desgalhando-se...e quando o raio a derruba a chuva rega a semente e nela pousa uma ave negra e azul que a esparramará pelos lugares mais inóspitos.
Ao longe um remoinho de poeira em espessa trama de fios rebrilha sob o lusco fusco do tecido do entardecer. Uma dança asterisca sob o olho d’água um chiado, é preciso deitar o ouvido sob o rastro quente do próprio corpo e ouvir junto as coisas existirem.

Ele acabou de passar por aqui. Um pouso sobre a pedra, asas em flancos e a ressonância ganha altitudes.Agora ele é pássaro pousado no horizonte. O zumbido da montanha, a corredeira bebericando o crepúsculo, o fio do horizonte balouçando doirada flama. Na estrada a linha dos rastros serpenteia e quebra as encostas, os flancos dos desvãos, os passos fundos dos roldões escrevem sobre o barro quente das encostas.

Entre curvas serpenteiam os sulcos, pontos que se abrem e se fecham em sístoles e diástoles do prumo que vai se estirando como uma corda a sonorizar-lhe as passadas.

Cada enlace um tom, infinitos acordes, queda a linha sobre o abismo fundo das travessias, ele vem de longe, de muito longe, sob o toldo a colheita e as sementes da ultima safra e desta assim, sucessivamente, carrega as sementes das ancestralidades aconchegadas nos balaios de cebolas, de abóbodas, das naves, aves de espigas, o grão armazenador da energia da criação e ele ao longe ele singra ora célere, ora em passo lento, margeando os córregos. Atravessa o serpenteio do vale da morte, enquanto a sombra escreve seus diagramas, sobe e desce a trilha, entre os flancos ....senta-se à mesa do tempo, come do pão repartido, adormece sob a quentura dos seios, singra o vale com o tambor das medidas cheias, que é milagre se nascer do estrume, acontecer na luz e ajoelhar-se em prece sob a tumba da própria floração..


DOS GRÃOS DO ALFABETO


Eu a vejo agachada afofando a terra. O regador ao lado, o balde, o esterco bem misturado. Vejo-a regando todas as tardes, incansáveis canteiros naqueles quintais. Vejo as sílabas apontarem do chão, sob o retângulo dos canteiros e milhares de mudinhas verdinhas buscarem a quentura do sol. Vejo-a transladando as mudas, acompanho os versos comporem-se e o mistério acontecer à mesa de tábuas escovada a pedra. Miro aquela santa ceia dependurada na tosca parede que ainda não sabia quem a pintara e também ela não sabia mas, sei que ao centro existe um ponto magnético donde emana o calor e que ele pode estar à mesa do amor agora quando ela cortar o pão quente que acabou de desenfornar. Espelho-me no chão lustrado, o vassourão corre como uma gangorra caleidoscópica e meus olhos correm juntos, inesquecível aquele solo de ternura que me aquece e que guardam os grãos da palavra. Verso a verso estiro o verbo que cai em contas das gotas dos meus olhos e borra minha ternura, lembro daquela janela imensa do meu quarto, que se abria às sementes que agora brilhavam no céu e esses pontos me reescavam os grãos do alfabeto da vida, que ela conhecia e semeava sem saber ler, naquele livro manuscrito de sementes e que meu olhos respingam do tinteiro e borram as minhas páginas e preciso de mata-borrão...


DO TEMPO DOS JARROS


A poeira cinge o ar e evapora e por onde ele passou os sulcos profundos impregnam o chão entre as araucárias. Ao longe a figura alta, esguia, o sobretudo escuro, os passos compassados, largos, ei-lo chegando sempre pontual para as aulas de latim. Seus olhos de intenso verde escuro fitam e filtram perscrutadoramente tudo ao seu redor. Seus olhos se abrem em leque e flamejam. Há um solene murmurejar de águas puras que cai daquelas quedas d’água, ele sabe o sentido dos ventos e dirige a embarcação com ternura, conhece a lírica dos mastros e sabe da prenhez dos delírios daquelas moçoilas ávidas, botões frescos naquele jarro de vidro, onde a roupagem das folhas sob os caules confundiam-se e a água desnuda deixava entrever seus corpos translúcidos, de translúcidas sílabas que rebrilhavam aos olhos na lousa úmida do poema. Sobre a sua escrivaninha simples rescende aquele maço singelo de botões que trouxe de seu roseiral, uns abrem-se, outros pendem, apóiam-se uns sobre os outros, se compactam, bebem da mesma luz, guardam-se das sombras, a luz num esbate, noutro trafega de raspão, os olhares se ocultam, vicejam, rastreiam-se...os botões se abrem e se fecham, ele cuida para que nenhum pereça antes de abrir-se...
É o tempo daquele jarro sobre a mesa, é tempo de degustar daqueles aromas, de ouvir a força das sementes além do cinzel, na acústica dos grãos esfalfando cada botão, cada destino, ele sabe, lhe foi dado a guarda do tempo daqueles jarros, de suas podas, dos cuidos de cada um, versos vivos naquele quintal e ele era apenas um jardineiro, um emigrante, um estrangeiro e muitas eram as línguas que se falavam naquela aldeia, mas, parecia que só ele era quem falava e entendia dos sons grãos do alfabeto e da escrita da linguagem dela...


PETRUCHO


( Petrucho tem três aninhos e pensa que já é gente grande “petrucho é cranton"... dizia sob a safira do céu de seus olhinhos!)

Zocha mira seu rostinho de anjo rosado com cara suja, vestido de calcinha meio pau,(calça curta), com suspensório sempre caindo, quase derrubando-lhe as calças, narizinho sempre ranhento e a saudade repica sob a lona do Carroção:


- Petrucho seria um anjo da Senhora de Chestokova? Enquanto isso na cozinha, Irentcha sua irmã esfrega e esfrega com sabão de soda e pedra a tábua da mesa.

Será que foi nessa mesa que São Lucas pintou um dia o retrato da Virgem lá em Chestokova? O anjo Petrucho cresceu, quantos anos luz terá hoje? E sua irmã Irentcha aquela polaca magrela
que tinha as mãos branquelas, sempre vermelhas de lavar louças, roia as unhas e também fazia o terço da capelinha de Chestokova.
Acho que é de tanto ver Irentcha lavar pilhas de louças que aprendi a ter cuidado com as louças... e mesmo assim quebro pratos!

A polaca Helena e Yujo Alfaiate são rigorosos na educação dos filhos, é preciso aprender a respeitar e lavar bem as louças próprias, dizem, para saber respeitar a dos outros...porque as louças são frágeis como a vida!


O jardim de Irentcha era cheio de dálias e cravos...nele cabia a cidade inteira, a única praça, as ruas desertas, nele as flores existiam e respiravam...

Lembro quando, Jagunço, o cachorro caiu no poço, Irentcha magrela e o outro irmão, o Chico polaco, tiveram que se desdobrar e buscar água lá de casa em poço mais fundo para lavar as louças.

Ela chegava da escola com seu guarda pó branco, pernas finas, era alta e já trocava de avental para lavar as louças do almoço. O pai, um polaco de cabelos lisos e bigodes era alfaiate e tinha atelier na parte da frente da casa.
Ele vivia com uma fita métrica ao pescoço, seu balcão era impecável e sempre concentrado na grande máquina de costura de ferro preto. Mas, eu levava cada susto com aquele manequim vestido com os ternos de casemira prontos no beiral da porta de entrada da alfaitaria...


Assim, a cozinha da casa do alfaiate sempre tinha que estar com o fogão aceso para abastecer com brasas o ferro de passar roupas para seu atelier que à época,ainda na sua casa não tinha energia, esta passava longe na cidade de Araruna, por isso isso a chaminé da casa de Irentcha sempre fumegava pelos céus...todo o mundo sabia que o Polaco estava trabalhando! Eu ficava olhando...parecia um incensário ardendo...


A casa dela não era coberta de telhado de "talbinhas", como tantas outras naquela cidade e também não tinha parapeito com gamela fora da janela para Irentcha lavar as louças. Era na pia da cozinha, sob a fria pedra, que o pão de milho e centeio era amassado e que suas mãos branquelas lavavam as louças da família, por isso suas mãos eram judiadas,ásperas, sem esmalte nas unhas, mas como as bochechas de Petrucho eram rosadas e a cozinha sempre asseada.
Mas, quando Petrucho gritava com fome, balançava com suas asas a casa inteira do polaco alfaiate!


PULÔVER PÚRPURA


...na lã da infância/se guarda o eterno!

Entre pacotes de trigo, fubá, açúcar Diana, café Marumbi, latas de azeite Fanadol , Primor, pacotes de gordura vegetal, pedaços de sabão Amazonas, latinha verde de margarina Saúde,com a estampa daquela menina de laçinho, lá estavam aqueles com novelos de lã coloridos embrulhados em papel celofane .Que ansiedade!

Com que expectativa eu vinha pela estrada ajudando a mãe a carregar as sacolas da venda do seu Rufino, só na esperança daqueles novelos. Aprendera a tecer com Maria irmã de Edilia, a manca, dentuça e crente, as irmãs que moravam numa casebre, de chão de barro, na beira da linha do trem , na vila Lindóia e que tinham as panelas de alumínio areadas,mais brilhantes do mundo, dependuradas nas paredes e naquele paneleiro em pé como um torre acesa.

Maria trabalhava longe numa fábrica e tinha uma bicicleta Monark cor bordeaux, com rede de fios coloridos na roda traseira. Como eu ficava deslumbrada com aquela bicicleta... Foi Maria quem me ensinou a trabalhar com as agulhas. Mas, a mãe só comprou a quantidade certa de novelos para os pulôveres que eu ia tecer, depois de eu haver tecido o meu primeiro pulôver, é claro...

E a artesã ficava feliz com o primeiro emprego de tecelã, já havia treinado muitas mantas, tecido kilometros de tripas em ponto meia que se esticavam que nem elástico e compunham um grande varal que podia agasalhar o bairro da Vila Guairá inteiro.
E foi assim que a mãe confiando no meu tear comprou aqueles novelos de cor púrpura para eu tecer a blusa de Maruska polaca filha da dona Nuska à qual a mãe devia muitas obrigações. Daí é que nasceu o primeiro pulôver.

Eu ia construindo os tijolinhos, entre pontos meias e tricots palmo a palmo e o pulôver nasceu. Como era lindo e cheiroso aquele pulôver de lã barata, Eu ficava orgulhosa porque havia tecido sozinha aquela peça, quer dizer, orientada por Maria, mas, ele era cheiroso como o pão que a mãe amassava.

Que alegria poder tecer com as próprias mãos, construir com as mãos. E assim ficou de pé o pulôver cor de púrpura e a mãe de agora diante trazia no meio das compras da venda do Rufino as lãs baratas para eu tecer os pulovers para os irmãos. Jorginho de franjinha Curumim ganharia um azul claro, , cor de girassol para a irmã Malu, branquinho para Luisa, há esse da Luisa um dia eu errei e fiz uma manga com tripa comprida e tive que desmanchar tudo...
Que contentura habitava o coração daquela menina.. Um cheiro inesquecível de lã cai dos olhos desse sal do agora, mas as agulhas moendavam e o fio serpenteava, saía da linha que se abria desde a roca do porão daquele bangalô da rua Alagoas, a gente esticava e ele subia depois pelas pipas, pulava a janela do meu quarto que dava para a rua principal do bairro e enlaçava os pontos de tudo que acontecia por ali.

A dona Lair mãe da Soninha de cabelo vermelho, menina mimada, filha única, sardenta igual eu, era muito dengosa, a mãe fazia-lhe todos os mimos e eu só apanhava. Nossa!!como ela era bonita!

E eu gorducha com aqueles cabelos compridos demais que a mãe penteava todos os dias e fazia uma trançona com fita dependurada e mandava ir no armazém da polaca Vanda sem olhar para os lados.- Vai buscar um pacote de banha! dizia franzindo o cenho sempre de vaca brava.

Mas, qual, no caminho encontro Arlete Kikotte Irentcha gigante, uma polaca tipo garça....querem dar uma surra na trampa da Mafalda...

Deus, eu não posso olhar para os lados...nem quando o polaco Dirceu esticou os olhos para mim nos meus quinze anos, lá na casa da rua Goiás e falou dependurado pelo do lado de fora da cerca de ripas:- Se um dia voce não for minha, não será de mais ninguém! – Cruzes...que presente!!!Nunca fui dele, e afinal fui de quem? Sou de quem?

Sou é dessa terra estranha que me tece, das agulhas que me suturam e me nascem, sou dos espinhos que me brotam, sou desse pó grávido do meu chão.
Um dia aconteceu eu sangrar a alma com os fios da ilusão que tecia e não sabia que os novelos desse sangramento jamais estancariam....


O GUARDA- COMIDA


É isso mesmo. Ele era apenas um guarda comida que foi encomendado pela mãe para seu Manézinho carpinteiro e de repente ele chegou nos mirando, levantando nos braços aquela soturna casa da praça de Araruna.
A cozinha escura, sem pintura, a casa inteira de madeira era sem pintura, meu Deus como era escura e vazia aquela casa, precisava urgente de um guarda comida, porque lá havia muitas baratas e as lagartixas xispavam pelas paredes e a mãe só tinha prateleiras abertas para guardar as louças e as coisas.
Como ele era grande...imenso...se fosse medido...era do tamanho do mundo. E o mundo afinal, que tamanho tem mesmo? A mãe sabia da medida do mundo, tinha sempre uma fita métrica na sua máquina de costura Usquarna, mas, não andava com a fita no pescoço igual o polaco alfaiate Retka, pai de Irentcha. A mãe media tudo com aquela fita métrica e costurava as nossas roupas e fazia os lençóis das nossas camas de algodão e cretone que comprava

e comprava fitas para amarrar meus cabelos na casa de comércio do seu Antonio da esquina da praça onde até comprou até meus sapatos brancos, para o desfile do grupo escolar.Aquela era também uma imensa casa de comércio, me lembro muito das botinas, dos chapéus...do cheiro daquela casa de comércio. Tinha um cheiro perfumado, um cheiro que nunca vi em frasco de perfume algum. Onde será que se acha daquele cheiro? Será que existe ainda daquele perfume?
Mas, finalmente o armário encomendado chegara e estranhamente ocupava todos os espaços não só da cozinha mas de toda aquela nossa casa imensa e vazia. Era imenso como um trambolhão, emendava com o azul do céu, porque era pintado de azul também, um armário gigante, seu manezinho carpinteiro trouxe ele bruto daquele jeito. Não sei até hoje por que não cepilhou a madeira e ele veio com as felpas e tudo, mas, era diferente, ele era pintado de azul claro, e iluminava aquela cozinha escura. Tinha ganchos pra dependurar as xícaras, as canecas de alumínio e esmaltadas, a chaleirinha esmaltada de chimarão do pai sempre ausente, e pequena tramelas seguravam as portas....ele guardava tudo...tudo...xícaras, panelas de ferro, espumadeiras, a máquina de moer café, aqueles pacotes de trigo, guardava a casa inteira até quando despensa ficava vazia, mas, lá tinha uma máquina de torrar café com aquela bola perigosa que girava o mundo e era o lugar onde ficava a irmã menor sentada sobre um cacho de bananas, colhido do quintal comendo.Como era belo aquele guarda comida azul feito a machado,... pesado, monolítico, guardador dos pratos, das panelas... Estranho, de repente ele levantava a nossa casa com seu vazio nos braços. Aquelas portas pesadas, rústicas nos guardavam. A nossa casa era muito insegura com aquelas venezianas escuras, aqueles vidros embaçados, aquela sala imensa que a mãe mandara abrir a parede para clarear porque as janelas eram muito pequenas. Mas aquele armário forte, com suas portas davam para um estranho lugar...e a noite ele as abria e com a mãe nós saíamos pelos cafezais de Araruna, onde a lua seria guia durante uma viagem de fuga que o destino marcaria e não tardaria por nos esperar...


A VENDA DO RUFINO


Ah, como esquecer o armazém de secos e molhados daquele português na Vila Lindóia depois de lá, do trilho do trem...Abençoado homem que vendia fiado e confiava nas tranças de minha mãe!

Parece que ainda lembro da misturança de cheiros daquela venda entupida de coisas.Como esquecer aquela mistura de tantas coisas apetitosas que faziam meus olhos esbugalhar se até hoje tenho vontade de comer aquelas balas de gomas, aqueles queijos, aquelas lingüiças, tomar daquele capilé...

Ah, como tinha queijos,havia muitos queijos espalhados pelo balcão,fatiados, dependurados, amarrados,sardelas nas latonas salgadas, pipocas baratas, grandes queijos lunares, solares, redondos,apetitosos, amarelados, curtidos,langorosos, amarrados...tinha salsichões baratos dependurados, também,pertinho dos salames cheirosos,ajeitados às pesadas mantas de toucinhos defumadas...muito cheiro misturado de comida e armarinhos,penduricalhos, copos que se fechavam e se abriam,aquele balcão era tão alto....mas eu esticava os pés e via
-Balas de goma, rolos de fumo, venenos de ratos,venenos contra baratas, chicletes de bola, bolinhas de búrico, gasosa de framboesa Cini, de limão, de abacaxi, gengibirra, chicletes Adams de caixinha...chapéus, de palha, de feltro, parecidos com os do meu pai, ervas de chimarrão ...cuias, bombas iguais as dele...tantos caixotes de lavraturas dessas folhas de partilha, com quem?


Ora,caixas e caixas de sabão amazonas, banha de porco e gorducha vegetal, que a gente passava no pão com açúcar ou com sal...Ah sim, haviam muitas latas de banha
e cera canário... sapólio radium e soda,também aqueles vidros deitados,gorduchos, atarracados,com
a boca sempre virada pra dentro do balcão,recheados de doces de "nariz sujo",aquele enrolado de creme amarelo e as queijadinhas...

E, aquelas balas de ovos, amarelinhas,incríveis balas de misturas com côco que a gente esquecia sempre e chupava nos lugares mais loucos!.Pirulitos então? Melecados e a granel, chupetas com gosto de melado,
ficavam perto das geadas e das nuvens dos algodões doces dos infernos e do céus e das marias-moles envoltas em coco queimado, aos montões nos vidros bem guardados próximos das paçoquinhas de amedoim torrado.

Mas o que eu gostava mesmo da venda de seu Rufino eram aqueles novelos de lã baratos, de todas as cores, que a mãe comprava na conta e eu fazia os pulôveres dos irmãos que Maria, irmã de dona Edília e que morava numa casinha cheirosa na beira da linha do trem me ensinava.

- Ah mãe corajosa!...que quando as panelas ficavam vazias lá ia ela na venda do Rufino
e mesmo não sabendo assinar direito o nome,ele a comida fiada a conta lhe fiava o preito.

E depois sempre silenciosa com sua matemática de cabeça,eis que não sabia ler nem escrever ,ela preparava um talharim bem regado ao molho de tomates,com maionese de ovos de galinha vermelha e batatas e frango refogado com cheiro verde manjerona e levava o prato bem embrulhado, quentinho,em cheirosos panos de algodão alvejado,pra velha dona Conceição ,encravada no leito, no fundo
de um quarto fétido que morava lá nas mesmas bandas da Vila Lindóia e que ela ajudava!

-Psiuu! quieta menina!Segura direito essa sacola!!! Ela varava-me firme nos olhos!...


OS QUEIJOS DO PADRE SANTO


Tudo acontece muito rápido de repente, um sopro, um grito, um mapa semovente, as linhas se mexem, as casas se contorcem e o papel o vento levanta vôo. Para onde levará aquele mapa com a igreja de madeira de São Cristóvão, os seus balanços, gangorras e a casa paroquial sempre de portas abertas por onde se divisava a cozinha que dona Júlia cuidava zelozamente e aqueles enormes queijos que pareciam grandes hóstias sobre a mesa? Ah, eu ainda sofro dessas incertezas quando tremula esse mapa.-Será que eu quando comungava não via queijos do padre Santo, no lugar de hóstias? Que sacrilégio maior para com o mistério da comunhão por isso nasci excomungada mesma da capela da minha devoção...sempre quando acredito num santo ele cai do altar na minha cabeça e trai até mesmo o delírio da minha sombra...


A PARTEIRA


Lá vem ela, passos compassados, saia longa, franzida, batendo quase nos pés, tão distinta, uma refinada dama, como a emergir de uma tela de Seraut ou de Manet, era uma senhora de múltiplas pétalas dona Margarida, aquela parteira alemã que assistiu ao nascimento de quase toda a população daquele bairro pobre da Vila Guaíra. Mora ao lado de nossa casa, na rua Goiás, numa pequena morada de madeira, com janelas de duas folhas revestida de heras e cercada por um pequeno jardim de buganvílias e muitas margaridas.Uma casa silenciosa, um casa memorial, uma morada de memórias como ela, memória viva, tem uma farta coleção de revistas O cruzeiro, Fatos e Fotos, e uma estranha foto na parede desenha-lhe um perfil de uma dama como que saída dos quadros impressionistas, com sua beleza nórdica.O cabelo cor de neve guardava uma peruca sempre coberta por uma tênue rede, os olhos de safira azuis encravados entre as nervuras das rugas do rosto alvo, o sorriso miúdo, a voz rouca como a ecoar de profundo labirinto, do outro lado de sua morada habita o único filho ,Vergílio, alemão casado com a bondosa e simpática Lourdes, uma pernambucana sempre com um sorriso de maracujá doce...
E como ela não tem televisão, toda a noite passa beirando a cerca de ripas para ir assistir a novela, ou os seriados bonanza, Laramy, na casa de Florami, a mulher estatua, esposa do funcionário Dirceu do Tribunal . Ela tem um sorriso lacônico e profundo e guarda mistérios com aquela bolsa preta e seus instrumentos. Pisa firme no chão, todos a conhecem ,é única, de olhar intenso e suave e passos compassados. A janela de nosso quarto na lateral da casa abre bem diante de uma das portas da cozinha de dona Margarida. Quando ela abre a porta à noite que dá frente para a nossa janela e joga a água de suas abluções, de sua bacia esmaltada, parece chover no mundo, pois que guardarão de mistérios aquelas águas placentárias que ela rega o mundo com o segredo das intimidades da vida que tão bem conhece?


MISSA EMPÍRICA


Enquanto os sinos dobravam na igreja ortodoxa entre os cedros no topo da colina, na apostólica romana na concha do vale da Vila Guaíra quebravam-se as vidraças, fugiam os carneiros do retábulo, despregavam-se as pétalas das palmas bentas, as sílabas voavam dos salmos, os santos desciam dos altares indignados a investir contra os fiéis com suas máscaras que ajoelhados assistiam a missa empírica.
Frei Lucas não conseguiu mais caminhar, congelou-se em sal de estátua, derrubou o cálice de estanho do altar e virou santo.
Pelo chão o vinho derramado agora, esparramava-se e um rio vermelho começava a inundar a igreja enquanto estilhaçavam-se os vitrais e os corvos dos trigais alvoroçados guerreavam entre si.
Os balanços do pátio da igreja católica também, balouçavam as nuvens e já alcançavam as casas do bairro pobre da vila Guaíra e o vendaval
impiedoso sibilava com seu gume as tranças da menina Zocha, tranças que eram trilhos por onde corria pedalando a sua " Ciclone" verde musgo, a desafiar as bofetadas do vento e navegar sua ave-pipa pelos ares e a tecer com esses fios os pulôveres dos irmãos para os invernos gelados e rigorosos de sua Curitiba. Os elefantes de Dalton Trevisan ocultavam-se agora, nas jaulas em derredor do Passeio Público. Contemplavam só de longe o revoar dos pássaros pelas árvores com os olhos congelados...

Dona Hilda bate forte os punhos sobre a mesa de taboas largas de madeira crua, a senhora de Chestokova e de Schoenstat que a perdoasse pois lhe tremeu o altar de madeira da velha igreja de São Cristóvão. Filha de imigrantes carregara na roça em Santa Catarina balaios de batata e fardos de fumo para o pai às costas e quando trabalhou no açougue este ficava-lhe com o salário porque era preciso ajudar a criar os demais onze irmãos, eram doze
para sustentar na imensa mesa rodeada de bancos compridos sem encosto, na cozinha de chão batido. -Temos que comer e um cheiro de ave depenada vem do altar, disse em voz sofrega. Galinha aprendeu ela, se torce o pescoço mas, anjos não roubam nem perdem asas, diz. Temos que desocupar essa casa, não se come letras, os pratos estão vazios, nas pereiras as borboletas estão parindo morcegos, a privada de buraco vai explodir de uma hora para outra e os vermes criarão asas e não reclame se baterem disfarçados de mendigos de solidão às portas da noite pela cidade, a mendigar amor e se apoderar de óleos e pão guardados pelos incautos que ainda cultuam a boa fé, a implorar-lhes falso pão de cada dia, e antes que o barco vire, vamos aliviar-lhe o peso. O senhorio assinou nossa carta de despejo. Esse país e suas leis no expulsa do mundo de novo. Não há juiz que nos conceda outro espaço agora, não temos casa, e não somos família reconhecida perante a lei, bastardos são execrados vivem em exílios, daqui há pouco, em vinte e quatro horas...a barriga ta roncando, vou até a cidade, olhou a televisão Empire de caixa de marfim, olhou a geladeira Climax que tanto precisava, pensou naquele anel de jade de pedra verde, enganamo-nos com pedras...
E assim congelou-se o pátio da igreja com seus balanços onde os sonhos flanavam...

Uma casa bombardeada foi alugada numa chácara distante sobre o morro dos butiazeiros, no bairro da Cruz do Pilarzinho, talvez os anjos estivessem lá e na lista dos aprovados do vestibular da Faculdade aparecia o nome da menina Zocha...


ENTRE CORRENTES UMA ELEGIA PARA O IMIGRANTE NIKOLAO


Meio longe ou meio perto só uma mancha imensa
na retina de borra da tela esmaecida. Não sei se
passo perto ou passo longe, se fico em cima ou se
fico embaixo, se o banco é alto, então, minha visão
é abaixo da linha do horizonte, mas a grande bacia
da água é muito grande, uma imensa cratera e gira
o meu olhar como em decanto líquido, não consigo segura-lo
e a figura daquele homem como uma grande estátua
me horroriza. Com dificuldade olho a grande mesa,
há leite, pão feito em casa, canecas esmaltadas, mas,
não consigo vê-la...não a vejo, os pés de madeira bruta
sobem aos céus como grandes colunas. Me agarro com
dificuldade neles e consigo subir com dificuldade sobre o
banco. Aquele homem ao longe tem uma barba muito
longa, como uma velha árvore tombada permanece
naquela posição imóvel. Os circunstantes arrastam seus
enormes pés...ouço-lhes as correntes, há como é
terrível ouvior os sons de correntes, correntes que
degolam, assim o matadouro próximo daqui tá
fazendo agora, correntes que se usam em pescoços
com santinhos, correntes que em cadarços amarram
sapatos, que afundam pregos em sua sola...há o solado
dos sapatos e o velho sapateiro Lucidório que mora
no bairro Jardim Paulista, há alguns quilometros daqui
do escritório...com seus sapatos consertados, congelados
naquelas prateleiras com cheiro de cola, tinta e fungo de
pés... os pés que são suportes e arrastam correntes...mas,
a barba enorme daquele homem sentado continua
fustigando o meu olhar como uma imensa mancha
que o tempo, nem as águas das chuvas não conseguem
diluir...sua barba é uma enorme corrente serpenteando
as dobras do instante. E eu, não consigo segurar o instante,
a palavra foge, se esfuma, apenas a ouço e já a vejo
despregar-se no tempo, mas, a grande mancha se
reconfigura na tela e revejo com claridade atrás da
palavra, o velho Nikolao, meu avô, filho de imigrantes, com suas
longas barbas, os pés dentro da bacia de água cheia
de sangue e uma ferida profundamente escavada
sangrando-lhe intermitentemente de uma das
colunas de suas pernas...No vazio do espaço a
formatação das linhas das águas que se esvaem,
a barulheira na farmácia aqui ao lado, o cinza
recaído sobre o gramado da manhã, as correntes
se arrastando e despetalando-se ao mesmo ritmo,
tudo sempre se esfumaça, rasga-se...

Impressum

Tag der Veröffentlichung: 27.11.2010

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